É um lugar-comum nas descrições ocidentais do subcontinente, desde a passagem de Marco Polo no seu caminho da China para Veneza, no século XIII: a variedade da Índia continua a ser o que mais impressiona o forasteiro. Muitos séculos depois, a fixação no estereótipo do contraste modela o sentimento espontâneo do viajante, por mais atento e avisado que esteja ao desembarcar – por exemplo, na paisagem bizarra do aeroporto de Bombaim, onde os gigantes A380 manobram numa pista completamente rodeada pelos casebres de um enorme bairro de lata.
A passagem pela capital do estado do Maharashtra é uma etapa que tem o préstimo de podermos dispor das primeiras linhas contrastantes com o destino final desta incursão – Fort Kochi, a antiga Cochim, onde os portugueses quinhentistas semearam uma inestimável herança cultural em termos de arquitectura religiosa e civil, de vocabulário – cerca de duas centenas de palavras - que subsiste no malayalam, a língua do Querala, de influências na gastronomia e em algumas expressões artísticas. Se o velho crioulo indo-português se extinguiu como desaparecimento dos últimos falantes, resta uma meia dúzia de apelidos, como Sousa, Costa, Cruz.
Com o rajá de Cochim, porto frequentado há séculos por árabes e chineses embarcados no negócio de especiarias, se entenderam os portugueses em acordos – uns comerciais, que foi para tais contabilidades que largaram do Tejo as naus (a par da obsessiva cruzada contra o Islão), e outros bélicos, contra o reino de Calecute, que tão aguerridamente recebeu os invasores. Nem Vasco da Gama nem Pedro Álvares Cabral tiveram aí grande sucesso e mesmo as hostes de Albuquerque se viram em grandes trabalhos no assalto à fortaleza, “onde acharam ali seiscentos mouros e naires, que os receberam como valentes homens”, conta João de Barros na Década II.
Se em Cochim as gentes eram favoráveis, o lugar não o era menos: “Tem este reino um rio mui grande e bom…”, lê-se no Livro em que dá relação das cousas que viu e ouviu no Oriente Duarte Barbosa. E acrescenta o cronista: “… há muita pimenta e nasce em toda a terra… muito e formoso gengibre, belide e cardamomo, miramulanos, canafístula, zerumba, zedoaira e canela brava”. A cooperação com o rajá traduziu-se em abundante benefício para os recém-chegados: até à conquista pelos holandeses, na segunda metade do século XVII, foram nascendo igrejas, feitorias e fortalezas ao longo da costa do Querala, tornando-se Cochim uma escala crucial da Carreira da Índia e das naus que vinham das Molucas e de Malaca e na primeira cidade de perfil urbano “ocidental” da Índia. É possível encontrar sinais desses tempos um pouco por todo o lado, nomeadamente nos restos do forte D. Manuel e nos velhos edifícios coloniais, como a chamada Casa Vasco ou os casarões de Mattancherry.
O apoio em terra era essencial para o propósito de atacar e destruir o comércio muçulmano de especiarias no mar Arábico, cortando a cadeia que, via Egipto, abastecia Veneza. Para tal, recorreram os portugueses a um método expedito: criaram um sistema de salvo-condutos, os famosos “cartazes”, sem os quais nenhum navio estava autorizado a circular com carregamentos de especiarias ao longo da Costa do Malabar. Se lucraram os audazes recém-chegados, vantagem retirou daí também o reino de Cochim, que com a nova aliança passou a conhecer maior prosperidade do que a sua rival Calecute.