A montra deixa-nos fascinados mas são horas impróprias para visitas. Saídos do Maria Xica, um restaurante no piso inferior, casa de petiscos e bar no andar superior — e um terraço coberto com vista para a história (e estórias), ou não espreitassem sobre os telhados, tapeçaria estreita, as torres da Sé — tomamos nota mental: voltar num dos próximos dias à Cem Réis. Afinal, acabámos de chegar a Viseu, vemo-la quase fechada, luzes amareladas nestes caminhos de pedras irregulares que compõem o puzzle do seu centro histórico ondes os nossos passos ecoam; imaginamo-la à lareira abrigada do frio beirão. Na Cem Réis veremos como Viseu começa a olhar para si própria e a perceber que é mais do que uma cidade de província, que segue formosa e segura, aparentemente feliz na sua pele — inesperadamente “tatuada” pela Piranha Tattoo, estúdio de tatuagem de referência internacional.
Claro que já foi eleita a melhor cidade portuguesa para se viver — e até usa a distinção como um dos seus slogans; claro que é, desde 1936, conhecida como “cidade-jardim”, um golpe de propaganda turística que se lhe colou perfeitamente e que agora até dá nome a um festival multidisciplinar, os Jardins Efémeros; claro que é a cidade “de” Viriato e claro que é o centro da região vitivinícola do Dão. Mas parece que só agora começa a aprender a colher frutos destes e outros atributos. Um deles muito recente, aliás, o Museu Nacional Grão Vasco – museu há cem anos (a cumprir no dia 16), nacional desde o ano passado e pretexto primeiro da nossa visita à cidade. Contudo, 2016 não é de efeméride apenas para o museu: Viseu vai celebrar também os 500 anos da sagração da sua sé, da fundação da Misericórdia e o centenário da inauguração dos paços do concelho. Se 2017 foi declarado pelo presidente da câmara como “o ano oficial para visitar Viseu”, sobram motivos para não adiar essa visita e nos pormos a caminho de Viseu já este ano.
E, então, voltámos à Cem Réis, como montra deste orgulho viseense, beirão: das lendas da cidade representadas em azulejos ou bonecos (vemos um Viriato de barba hirsuta) aos enxovais “de antigamente”, nota Carla Oliveira, a mentora do projecto, dos cobertores de papa ao linho bordado, da música popular aos vários objectos que ostentam o brasão da cidade que inclui referências à Lenda de Gaia. “A ideia é poder dar a quem nos visita coisas da nossa história. De Portugal, mas privilegiando esta região. Temos pano para mangas, mas somos pobres nesse aspecto”, explica Carla. Pobres, se calhar, em merchandising com a iconografia local, ricos em lendas que fazem de Viseu uma terra de muitos mistérios à espera de serem revelados. Ou talvez não: melhor do que mistérios resolvidos podem ser as lendas que enformam um povo.
O mistério da cava
Viseu é um nome seco, duro. A Vissaium pré-romana romana desfazia-se mais docemente na língua. Talvez tenha evoluído na senda da dureza e a sua localização estratégica tornou-a fonte de acossos vários. Primeiro foram os romanos a domar os lusitanos (esse povo que não se governa nem deixa governar); caído o império vieram os suevos, visigodos até que chegam os 25 mil homens comandados por Almançor. Nesta altura a cava, que ainda não é de Viriato — esta apropriação será invenção seiscentista a inaugurar a moda de recorrer à imagem do guerreiro que lutou contra o invasor em períodos de crise nacional ou de exaltação nacionalista — , já existirá ou, depende das teorias, está prestes a existir. Não há maior mistério em Viseu do que o da Cava de Viriato, o octógono com 250 metros em cada lado (octógono que se tornou elemento gráfico da cidade). Uma coisa é certa: a sua construção (entre os séculos IX e X) é bastante posterior a Viriato, que provavelmente nunca esteve sequer em Viseu. “Viriato aqui é mais mitológico e afectivo do que histórico”, assume Jorge Sobrado, gestor da recém-criada Viseu Marca, associação de marketing territorial.