Fugas - Viagens

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O arquipélago boreal

Por Rute Barbedo

A cidade transformou o lago num labirinto. Assim começou o design. A natureza assenta sempre grave no Norte e Estocolmo não lhe escapa, com uma grande diferença: a do estilo ao quadrado, ao cubo, às esferas.

A Suécia está mais perto do céu. Ninguém queria admiti-lo, no avião, mas todos sabiam secretamente que era verdade. Por cima, as asas atravessam o Báltico, as ilhas, as árvores. Em baixo, as sombras fazem-se companhia itinerante, de um sol lateral. (Primeiro apontamento: “Passear pelas ruas com uma sombra constante do lado direito.”)

Pensamos que o país será inteiramente verde, feito de pradarias, ovelhas estáticas e pinheiros que um dia serão IKEA. E quando pisamos a capital, Estocolmo, não é inteiramente mentira. O tempo, apesar dos semáforos, é de campo. As janelas são amplas e dão para cozinhas ainda maiores. Dentro dos armários de pinho – imaginamos – estarão sumos, cereais, especiarias, vinagres, cacau, chás, tudo biológico; três variedades de pão; garrafas de vinho e licores, de reserva, para evitar a penúria de quando as lojas de álcool fecham (por volta das 19h durante a semana; pelas 14h, ao sábado). Na porta do frigorífico, fotografias a preto e branco. Na parede, molduras com fotografias a preto e branco. Candeeiros e velas sempre acesas, que o maior aconchego é o da luz – em Estocolmo, a luz é design.

Na rua, não há papéis no chão nem a voar. As gabardinas são impecáveis, os chapéus impecáveis, as botas de pele e desenho ultrafinos. Fika. No fika pega-se nas chávenas como em enxovais de prata. Por baixo dos pires ficam as toalhas rendadas ou o xadrez à Verão. Fika é tomar café, ficar com ele a aquecer as mãos, e adoçá-lo com dentadas longas num kanelbulle (meio rolo, meio folar tradicional de canela). Na Suécia, comemora-se o Dia do Rolo de Canela. É o 4 de Outubro, e as pastelarias perfumam as ruas de loucura. As cores de Outono são de canela, as mulheres – catastroficamente bonitas – são de canela, a culpa da vontade de morder o mundo é da canela. Quem amarrotar a toalha sai de cena. Quem entornar café… (reprovemos, irados e coreografados, com as cabeças).

E tudo isto de se estar perto do céu é, em Estocolmo e em paradoxo, uma coisa muito horizontal – o ponto mais alto da capital sueca fica a 77,24 metros do mar. Chama-se Vikingaberget – a “colina do viking”, em sueco – e consta que era daqui, do alto destes portentosos 77,24 metros, que os guerreiros nórdicos vigiavam o território de possíveis inimigos, turvos entre o nevoeiro do lago Mälaren e do mar Báltico. Hoje, que já não há barcos-dragão a ondular nestas águas, a colina é lugar de beijos repenicados e câmaras fotográficas apontadas ao sol poente.

Mas estávamos nós irados a reprovar tremores que entornam café em toalhas de 200 euros para também dizer que, na Suécia, um losango será sempre um losango. Magnus observa-nos a cozinhar o arroz. “Não é assim. O arroz faz-se com muita água e côa-se no final.” Protestamos. A água que evapore. “Aqui não deixamos a água evaporar.” Pausa. Talvez não evapore mesmo, nunca, de maneira nenhuma. Em Estocolmo há água por toda a parte; é real. Um passo em falso pode tornar-se num mergulho atrapalhado. “Apanha-se o metro e chega-se a um lago onde se pode nadar nu, ou caminhar numa floresta. Há uma relação cidade-natureza muito forte”, sente o pianista Filipe Raposo, que viveu na capital sueca durante dois anos, o tempo de estudo e de preparação do álbum Inquiétude – o nome que saiu dessa vivência de muita e pouca luz, nos extremos do ano. (Segundo apontamento: “Passear pelas ruas com a inquietude da perfeição.”)

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