É que há cerca de 60 anos que a cidade não pertence oficialmente àquela região, sendo capital do distrito Loire-Atlantique e da região então criada, Pays de la Loire. Ainda hoje a mudança gera amargura no discurso, ouvimos argumentos discordantes. Uns defendem que terá sido para que a cidade perdesse força contestatária, outros acreditam ter sido uma decisão meramente administrativa sobre uma região que se tornara grande de mais para se governar eficientemente. Certo é que existe “um grande sentido de identidade”, conta-nos Anne Lise, guia brasileira a viver há quatro anos em Nantes. “Por exemplo, quando perguntam ao meu marido de onde é, ele responde sempre primeiro que é bretão, só depois francês.” Nas bandeiras que esvoaçam orgulho no topo da muralha estão as insígnias do burgo e os símbolos negros do arminho bretão. Mas por mais que olhemos em volta, nada de azul, branco e vermelho.
O tráfico de escravos
Estamos debruçados sobre a varanda de pedra do castelo e continuamos neste jogo de descobrir a história através do que lá não está. Os significados nas entrelinhas da ausência. Primeiro de olhos no ar à procura do inexistente tecido nacionalista. Agora de cabeça em baixo, perscrutando as ruas em busca do rio que já não corre ali. Na linha de castelos e mansões nobres que povoam o vale do Loire, este é o último antes de o rio desaguar no Atlântico, a cerca de 60 quilómetros de distância. Mas nas margens da fortificação já não passeia a fita de água mais longa do país. Agora o rio é avenida.
Nos anos de 1920, a até então conhecida como “Veneza do Oeste” — lugar de confluência dos rios Loire, Erdre e Sèvre — decidiu secar a renda líquida que se desenhava no centro da cidade. Alguns cursos foram desviados, outros drenados, pequenas ilhas deixaram de o ser, alterando profundamente a fisionomia e o pulsar da cidade. No entanto, na maioria dos casos, a água foi substituída por linhas de eléctrico, largas estradas, ciclovias ou zonas ajardinadas, sem construção de edifícios, e ainda hoje conseguimos ver a memória do rio serpenteando a malha urbana. Uma opção que é também vontade camarária de “reorganizar a cidade de forma sustentável e sem destruir nada”, com uma aposta na rede pública de transportes e na criação de espaços verdes. Uma decisão que parece dar frutos: Nantes foi Capital Verde da Europa em 2013.
Mas viremos agora costas ao rio-avenida para continuarmos o passeio pelo centro histórico. A Catedral de São Paulo e de São Pedro é o edifício religioso mais importante da cidade, igualmente restaurado nos anos de 2000. Demorou quatro séculos a ser construída — desde a primeira pedra, colocada em 1434, até à última, já em 1893 —, embora sempre respeitando o projecto inicial. E porque isto do orgulho regional também se mede aos palmos, “os nanteses gostam sempre de dizer que é mais alta do que a Notre-Dame de Paris”, conta Anne Lise. Mesmo que a diferença não passe de escassos centímetros.
No antigo bairro medieval, são poucas as casas com a arquitectura da época que ainda persistem, com as características traves de madeira em cruz a sustentar a fachada. Em contrapartida, pululam as lojas gourmet e as boutiques, os cafés e restaurantes com esplanada. Em 2012, num tentativa de “envolver o comércio na iniciativa” do Le Voyage à Nantes, a organização decidiu recuperar a tradição de colocar sinalética sobre a porta de cada estabelecimento para indicar o que ali se vende. Da simplicidade dos antigos símbolos para analfabetos surgiram dezenas de peças coloridas e extravagantes. Ali um pé gigante estica dois dedos em sinal de rock&roll, acolá um unicórnio tem um cone de gelado a fazer de chifre.