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Sérvia: Para o caso de o mundo acabar amanhã

A bomba

Shawn é americano, estado-unidense. Passeia de boné dentro de casa, tem adereços pop art na sala, alimenta-se de junk food, usa meias de tenista e exibe um sotaque orgulhoso. Mas é sérvio, porque a língua original é essa, porque fuma muito e vive em Belgrado quase desde sempre, numa casa com um pequeno quintal, no subúrbio, para lá da auto-estrada, numa rua que alguns habitantes dizem já não existir. Dorme de porta aberta; é só chegar e rodar o puxador. Só que é croata, portanto, jugoslavo, na verdade. Lá nasceu, de lá fugiu, ainda ao colo, quando seis territórios do sul da Eslávia formavam uma unidade de guerra, entre bombas da NATO e sonhos de uma grande nação.

“Trabalhar com os sérvios é horrível. Nunca poderia fazê-lo. De Belgrado também não conheço muito. Vivo numa bolha. Trabalho com americanos, 16 horas por dia; falo inglês o tempo todo.” Ir ao Kosovo está fora de questão. “Seria estúpido.” A Montenegro vai à praia e volta. Permanecerá aqui, em Belgrado, a comer pizzas e hambúrgueres, embora até goste do queijo típico do país, o kajmac (os sérvios não brincam com o queijo. É na Reserva Natural de Zasavica que se produz o mais caro do mundo, feito a partir de leite de burra. Cada quilograma pode custar 1000 euros.).

Belgrado foi esquartejada, mais de 40 vezes, em diferentes conflitos. Por isso não espanta que perto do clássico Hotel Moskva se ergam supermercados e centros comerciais, nem que o mercado mais central seja uma instalação irremediável junto à pompa da catedral ortodoxa de São Miguel. Não surpreende que os alunos de Filosofia e Artes se percam entre livros de 500 páginas a tentar descobrir o que é o mundo e que o mundo caiba, complexo e bastardo, numa massa disforme de 360 metros quadrados, a área da capital sérvia.

Mas ainda é um abismo ver dois edifícios altos entre as ruas Miloševa e Nemanjina, feitos em pedaços. Foram bombardeados pela NATO em 1999 por serem símbolos do poder jugoslavo. Por que ainda não mexeram neles? “Porque não querem mexer demasiado na memória”, responde-nos um homem que cruza a avenida.

Subimos o quarteirão, o jardim, os prédios em bloco, cinzentos, os cafés new age, o conservatório de música, o teatro. Atravessa-se a cidade por dentro dos mercados e os morangos e cerejas ao preço de um Verão antecipado concorrem com os cafés de dois euros e meio. Café expresso, para esbater o turco, herança de 500 anos imperiais. Há igrejas ortodoxas, orações muçulmanas, inspiração católica no prato. Uma espécie de Oriente inadaptado ao Ocidente ou, por outras palavras: Balcãs. Mais na cabeça do que à nossa frente, o caos dos filmes de Kusturica; as mutilações no corpo de Marina Abramovic, que, sempre que lhe perguntam de onde é, responde: “Sou de um lugar que já não existe.”

O único lugar que parece ter escapado a tudo isto, na sua calma, é a Citadela de Kalemegdan, onde um músico empunha a guitarra ao pôr-do-sol e casais olham o cruzamento do Sava com o Danúbio enquanto lambem gelados. “As mulheres andam assim arranjadas, pintadas e de vestido porque quando eram novas não podiam fazê-lo. Agora aproveitam a liberdade”, relata Adrian. Descemos a encosta até ao eléctrico 2, que desenha um círculo na cidade. Sempre que surge a palavra “pijaca”, queremos saltar para lá e encher-nos de sacos de tomates e frutos secos e morangos, coisas que nunca comemos, nomes que não memorizaremos. O mercado de Cvetkova (à saída do eléctrico) são mãos a lavar cerejas e pêssegos por baixo de torneiras. Tudo gente real.

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