Fugas - Viagens

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Sérvia: Para o caso de o mundo acabar amanhã

Por Rute Barbedo

A Sérvia não chega a ser Kusturica, mas nela faz sentido pensar que a vida é um milagre, como no filme. Da desordenada Belgrado para o Sul, seguimos por caminhos de ferro e de asfalto, sempre de rádio ligado à música vermelha dos Balcãs.

Dizem que o comboio para Belgrado é dos duros. Do aviso consta: “Agarrem-se às malas e não preguem olho”, sobretudo no que toca à viagem nocturna. Mas nós partimos de Budapeste ao pestanejar da manhã, ainda os homens se refazem da primeira noite de Verão junto à Keleti (a estação ferroviária) e os que se despediram de solteiros cantam as últimas bebedeiras colectivas. À luz do dia, o comboio não há-de pregar partidas, mas, nunca fiando, não pregaremos olho.

A meio de uma planície, as carruagens vão dividir-se entre Moscovo e Belgrado. É uma curiosidade alarmada, de ver e saber o que fazem os eslavos do Sul junto à linha férrea num domingo quente. Seja o que for, fazem-no de tronco nu, já deu para perceber, enquanto cá dentro o ar condicionado põe-nos o casaco em cima. Mulheres grandes carregam sacos a imitar serapilheira com seis e sete revistas: uma de culinária, outra de crochet, outra de decoração, outra de passatempos… Kiskorös. Acenam-se lenços brancos na despedida.

O comboio embala, a respirar com os pulmões engasgados, como no cinema, entre as estações e apeadeiros do sonho jugoslavo. Há paredes rabiscadas, vinhas e papoilas, e aldeias que bebem pálinka e que se banham em lagos.

Kiskunhalas. Mais de 10 minutos de paragem. O sonho jugoslavo incluía comboios rápidos e revisores rigorosos; ficaram apenas os últimos (até Belgrado são oito horas e, garantimos, poderiam ser quatro). As mulheres lavram os campos, os homens olham de longe. Há batatas, alfazema, corvos apáticos. Como num poema. Kisszàllas. Bicicletas, homens que pedalam sem a mão esquerda, sem a direita, que fuma, agora sem as duas. Ora vejam: o circo em estado lento.

Porque o comboio passa mais tempo parado do que em movimento, é como se em cada arranque o mundo ressuscitasse. Tompa é um lago e um bar, unidos por pescadores, ainda que se mantenham isolados. Os grupos são para jogar basquetebol, desporto nacional da Sérvia. Lá chegaremos, se chegarmos a algum lado. Kelebia. Homens em tronco nu, grandes, apostamos que suam sem mexer um braço. Há quem caminhe com plantas rentes aos olhos, com sacos feitos malas, malas feitas casas. Fronteira. A polícia examina caras e cartões. Havíamos lido num blogue de viagens que poderiam encostar-nos ao metal do comboio, pelo exterior, para revistar cada poro e desconfiar de cada pêlo. Haveria provocação, desacatos, roubos e assaltos.

O homem do lado discute com a mulher. Tem os olhos azuis, fundos, tristes, o corpo longo, a pele branca e enrugada, como todos os húngaros. Todos. Abre as mãos compridas, estica as sobrancelhas grisalhas e farfalhudas. A mulher nada faz acontecer, os polícias também não. Subotica. “Sou muçulmano, não criminoso”, lê-se, em inglês, na parede da estação. Entra a polícia sérvia. Sorri mais, fala alto.

Os campos desarrumam-se. Continua a haver batata, mas também pimento, cebola, casas e quintais com vedações disformes, galinhas, homens de enxada na mão, vinhas, campos de milho, fábricas abandonadas, muitas. O cirílico desarruma-nos o latim. Backa Topola, um poema futurista. Cisternas gigantes. Edifícios esvaziados, tijolo escancarado. Zmajevo. Avançamos com a câmara fotográfica à vista, a carteira, o telemóvel. Quando nos roubam, afinal? Que blogues andamos a ler? O homem do lado já se acalmou. Entram pela janela blocos socialistas, pesados, maciços, quadriculados, a ponte, o rio. Belgrado.

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