Ainda assim, mesmo com os muitos espaços verdes, dois rios e praias, cores e cheiros vivos, Daniel M., viajante nascido na Austrália, queixa-se da pouca natureza e da poluição fabricada pelos carros loucos que atravessam a cidade. “Há muito barulho e Belgrado é suja.” Mas a mentalidade está a mudar, acredita. “Cada vez mais pessoas estão interessadas nos Balcãs como destino turístico” e “o país está a abrir-se ao investimento estrangeiro”, o que explica os novos cafés que pululam no centro e a fama das noites longas da capital dos cigarros e da rakija (lê-se ráquia e é a aguardente dos Balcãs – igualmente herança dos otomanos –, feita principalmente a partir de ameixa).
A crítica continua: “Quem se deixar ficar na cidade depois da fase de ‘lua de mel’ vai perceber que as pessoas vivem no limite e estão sempre preocupadas com o problema que virá a seguir”. O ritmo de vida, no entanto, é “muito lento e relaxado”, compara Daniel. Mas o resto da Sérvia, com os seus rios e florestas, fizeram com que este australiano ficasse. Rumamos para Sul, à procura desse “resto”, que inclui pão cozido em forno de lenha, lagos e montanhas, tardes a jogar às cartas e Davolja Varos, a terra do diabo, traduzindo.
Deus e o diabo
Marija Bralovic é estudante de Física. Cresceu numa aldeia perto de Požega, onde a escola era basicamente uma ruína com meia dúzia de alunos e um professor, mas as pessoas eram boas e felizes e respirava-se bem. Há poucos anos mudou-se para Kragujevac, no centro do país, “uma cidade morta até a Fiat ter aberto aqui uma fábrica” e onde, muito antes, em 1941, morreram milhares de sérvios (nunca se chegou a um consenso sobre o número, que varia entre 2800 e mais de 10 000), executados por soldados alemães. Por isso e pelo que veio a seguir (os conflitos inerentes à desintegração da Jugoslávia duraram de 1991 a 2001), mesmo que Marija não tenha vivido experiências de guerra, tem laços com ela. “O meu pai pertenceu ao exército e não matou ninguém, tenho orgulho nisso”, entusiasma-se. Mas sente um vazio identitário e revolta-se contra o “sistema de escravatura”. “Antes tínhamos tantas fabrika” e agora a economia não dá sinais positivos – o salário médio aproxima-se dos 360 euros e o desemprego subiu para 19% este ano.
A auto-estima dos sérvios reduziu-se a pó, analisa a estudante. “A maioria das pessoas daqui pensam que o nosso país não é importante e que não há razão para nos visitarem. Mas é completamente errado. Temos a melhor das comidas, pessoas sorridentes, uma natureza de cortar a respiração e os homens e mulheres mais bonitos”, garante Marija.
Têm também das igrejas ortodoxas mais coloridas que já vimos. À entrada de Kragujevac, a catedral desmonta-se em figuras de profetas sérios, com vestes de cerimónia, e crentes que os vêm saudar um a um. Limpam-se todos os cantos, a todo o momento, com panos e detergentes e novos panos mais imaculados que os anteriores. Do outro lado da rua fumam-se cigarros, mais, muitos; são as orações dos adolescentes sem passatempo. Talvez a proximidade ao templo filtre o pecado do vício. Para milagres maiores vai-se a Davolja Varos, já sabíamos. Mãos ao volante, mesmo que sem rezas.