Fugas - Viagens

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Em Salem o difícil é não acreditar em bruxas

Por Andreia Marques Pereira

Durante séculos, Salem tentou esquecer o seu pecado original, os julgamentos por bruxaria de 1692, mas, ironia do destino, nunca teve tantas bruxas como agora. Outubro, com o Halloween, é temporada alta nesta cidade da Nova Inglaterra.

É das primeiras imagens que retemos, quando passamos o portão, gradeado, do espaço que se encontra numa rua incaracterística e como que entalado entre edifícios: andamos uns poucos passos dentro do Old Buring Point Cemetery e ficamos a observar como duas aves exóticas, coloridas, deambulam no apoio de pedra sob o olhar atento de uma jovem. Parece algo incongruente o encontro com estas aves claramente de outras latitudes neste que é o segundo mais antigo cemitério dos Estados Unidos (1637), um espaço encravado entre edifícios nesta rua de Salem (Massachusetts), o mais notoriamente desenquadrado o do centro de visitantes.

Lápides de pedra gastas, inclinadas para todos os lados, algumas meio enterradas, a maior parte ilegível, despontam entre relvado pouco cuidado sob árvores frondosas. Há algumas pessoas que se debruçam sobre lápides, uma pequena multidão com guia junta-se debaixo de uma árvore tentacular, ao lado corre uma estrada movimentada. Estamos num dos locais que lembra a infâmia de 1692, os julgamentos por bruxaria mais célebres do país — as 20 vítimas directas (ou seja, condenadas à morte; há outras que morreram na prisão) não estão aqui enterradas (a localização dos corpos é desconhecida) mas há um memorial, do lado de fora, que as recorda; está sim enterrado um dos juízes que as condenou, John Hathorne, antepassado (e sombra de culpabilidade) do escritor Nathaniel Hawthorne — mas também onde repousa um dos cidadãos mais reconhecidos da cidade Samuel McIntire, arquitecto que dá nome a um dos distritos históricos de Salem onde a sua obra se exibe inclusive naquela que é considerada uma das mais belas ruas do país, Chestnut Street (ou, por exemplo, um dos peregrinos originais, chegado no Mayflower, o capitão Richard More). É um local, portanto, que simboliza dois dos motivos que dão fama à pequena cidade costeira da Nova Inglaterra — o terceiro é precisamente a sua localização geográfica que a tornou num porto florescente, com trocas abundantes com a Ásia, até à decadência no século XIX.

No entanto, há que assumi-lo — e Salem fâ-lo (agora) sem reservas — que a sua maior projecção no país e no mundo (graças em muito pela cultura popular que não se cansou de ecoar o tema: desde a peça As Bruxas de Salem de Arthur Miller às recentes produções televisivas como Salem ou American Horror Story: Coven) se deve a esse pecado (quase) original (a cidade foi fundada em 1626) da caça às bruxas. Não houve “bruxas” queimadas, houve “bruxas” enforcadas — até dois cães foram executados na histeria que tomou conta da região: tão depressa veio como se foi e durante séculos se tentou esquecer esse passado violento. Foi a “cidade dourada” pela prosperidade que o comércio marítimo trouxe, quer transformar-se numa “pitoresca cidade marítima”, mas não há volta a dar-lhe, tudo é obliterado pela “cidade das bruxas”, um cognome que é também um slogan turístico e contagia até os carros da polícia, que têm uma bruxa numa vassoura como símbolo.

Saímos do cemitério e numa das ruas que o rodeiam vemos a mesma rapariga do cemitério, com as duas aves empoleiradas nos ombros. Declina, educadamente, conversa ou fotografias. Segue calmamente e não podemos deixar de pensar que em Salem nunca terá havido mais “bruxas” (e quando falamos de bruxas também falamos de bruxos — e tal significa praticantes de wicca, a religião neo-pagã mais popular nos EUA) do que agora — mais à frente, numa praça, veremos uma placa da Witches Education League, para trás ficou a rua principal de downtown Salem, Essex Street, onde anúncios de leituras psíquicas, de cartas de tarot, livrarias e lojas especializadas no oculto são comuns, ficaram museus e atracções na maioria relacionadas com bruxas (e muitos deles sazonais: abrem normalmente entre Abril e Novembro) e ainda iremos descobrir o W.E.B. (Witches Education Bureau), o P.R.A.N.C.E. (The Pagan Resource and Network Coucil of Educators) e a Witches’ League for Public Awareness, fundada por Laurie Cabot, a quem foi concedido em 1986 o título de “Bruxa Oficial de Salem” pelo então governador do estado.

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