Aqui tudo, ou quase tudo, se faz à volta do rio ou com a sua bênção. “O rio é a vida”, diz Sombat a propósito do que consta sobre o projecto hidroeléctrico que, ao que parece, transformará irremediavelmente o ecossistema de Si Phan Don e poderá provocar insegurança alimentar a um universo de cem mil pessoas, para além de perturbações nos sistemas hídrico e geológico. Negócios multinacionais pouco claros: é o que sugerem várias organizações ambientais que lançaram campanhas para bloquear a iniciativa.
Ao fim de uma semana de andanças anfíbias, entre barcaças e bicicletas e caminhadas ao longo das margens do Mekong e dos arrozais, o retorno à varanda do hotel assemelha-se a um regresso a casa, a uma casa sazonal, como as dos pastores nómadas, familiar e reconhecível mas sem o ónus de jaula dourada: um lugar afável, enfim, onde se pousa, brevemente, o corpo e o cansaço. Neste penúltimo dia de estância em Don Khong, assente já com Sombat o transbordo para Hatsay Khoun, onde uma van me levará a Champasak (outro povoado ribeirinho rodeado de arrozais e templos), o barqueiro quer saber quantos são os rios percorrem a Europa. Muitos, tantos, pequenos e médios e grandes, que daria uma trabalheira contar. Ao lusco-fusco, com milhares de insectos magnetizados pelas luzes da esplanada de ripas sobre a margem, arrisco o cálculo, ou a hipérbole: todas as suas águas juntas não encheriam o Mekong. E quando Sombat me estende a mão e se despede, até ao amanhecer do dia seguinte, volta a lembrança de um instante da véspera, quando o barco era como mais uma ilha, mas em movimento, um instante aceso pela imagem da pequena Kimo ao leme. Sombat tinha as mãos livres, os olhos fixos na corrente, e disse, sem olhar para ninguém: “O rio é a vida.”
Shiva antes de Buda
A pouco mais de uma dezena de quilómetros da aldeia de Champasak e a cinco das margens do Mekong, encontra-se um dos recintos históricos mais antigos e valiosos do Laos, o complexo religioso de Vat Phou, um espaço arqueológico que pode constituir um inestimável e muito significativo complemento da viagem a Si Phan Don.
O conjunto monumental de Vat Phou é anterior a Angkor e as suas raízes recuam até ao século V, muito antes da consagração do Budismo no território que viria a ser o do Laos. Ainda que na arquitectura dos templos a marca cultural khmer tenha uma presença forte (os edifícios principais datam dos séculos XI a XIII, mais ou menos o período áureo de Angkor), é uma visão do mundo de origem religiosa hindu que a sua planificação e inserção na paisagem configura. Como se faz notar no documento da UNESCO que sustenta a classificação de Vat Phou (e da paisagem cultural de Champasak) como Património Mundial, para além de excepcional testemunha das culturas que dominaram a região do Sudeste Asiático durante vários séculos, o complexo foi concebido de forma a expressar a visão hindu sobre as relações entre natureza e humanidade através de um longo eixo traçado entre a montanha e as margens do Mekong e de uma geometria padronizada de edifícios religiosos, numa extensão de cerca de dez quilómetros.