Como um pobre em frente de um prato de comida, guardando a parte mais deliciosa para o final – assim me sentia eu, naquela tarde em que, em vez de ir directamente olhar as casas suspensas de Cuenca, resolvi caminhar junto a uma das margens do rio Júcar, admirando as cores de Outono pelo meio das árvores que se desnudavam e onde jovens casais conjugavam o verbo amar e as mães o verbo cuidar, os desportistas o verbo exercitar e os mais velhos o verbo descansar.
O campanário da igreja da Virgen de la Luz, na paróquia homónima, reflecte-se nas águas do rio que hoje corre para o Mediterrâneo e há milhões de anos desaguava no Atlântico, depois de se juntar ao Guadiana — quem gosta de cinema e, especialmente de Pedro Almodóvar, terá identificado o Júcar no momento em que Raimunda, interpretada por Penelópe Cruz, lança um frigorífico para as suas águas, com o marido, que matara em casa, no interior.
Cuenca, para muitos apelativa apenas por meia dúzia de atracções, tem a particularidade de convidar o viandante a uma errância solitária e muito mais abrangente do que fazem crer os folhetos turísticos — e situada como está, a quase mil metros de altitude, com as suas subidas e descidas constantes, as suas colinas e as suas ruas que parecem conduzir ao céu, é uma cidade que, por estranho que pareça, estimula os passeios a pé, à aventura sem guias ou mapas, a uma descoberta demorada dos seus mais íntimos recantos.
“Cuenca é uma cidade para digerir, para mastigar devagar, como uma antiga merenda (...). Ou para beber de um gole, como o mau vinho de uma boa bebedeira, essa bebedeira que nos dá para cantar e para jurar amor eterno a cada pedra, a cada insecto, a cada pássaro, a todas as criaturas”, assim a definia Camilo José Cela, Prémio Nobel da Literatura em 1989, num artigo a que deu o título Cuenca abstracta, a da pedra gentil.
Da ponte de pedra de San Antón, sobre o Júcar, no lugar onde em tempos existiu uma outra, construída pelos muçulmanos, avisto as casas viradas ao sol, todas muito próximas umas das outras, formando um bairro que parece respirar tranquilidade e não recebe nem uma ínfima parte dos turistas que calcorreiam as ruas empedradas e gastas pelo tempo da parte alta da cidade. Conhecido, também, como o bairro de San Antón, ainda há bem pouco tempo gozava de uma fama que contribuía para afastar os curiosos e que assentava na marginalidade e num estado de semi-abandono, motivando inclusive um plano da edilidade para o demolir.
No início da década de 1960, a população foi mesmo transferida para outro bairro de Cuenca mas as suas casas, ao longo de ruas estreitas ou trepando pela ladeira que conduz ao Cerro de La Majestad, não tardaram a ser ocupadas por grupos mais desfavorecidos. As obras levadas a cabo pelos políticos locais para melhorar as suas infra-estruturas e os serviços, bem como o projecto posto em prática para uma mais fácil integração apoiada nas vertentes urbanística, social e cultural, permitiram que San Antón fosse resgatado das trevas em que ameaçava mergulhar.