Ao fundo, avisto o rio Aras e, mais para lá, na terra de ninguém, trabalhadores arménios e turcos cultivam as terras, como se aquela aproximação fosse um sinal ou um exemplo que gostariam de ver imitado.
Chama da memória
A luz tímida da lua avista-se por cima dos telhados e as fontes luminosas, com os seus jactos de água que ora vão subindo, ora tombam sobre os lagos, proporcionam um espectáculo de cor que atrai um grande número de curiosos à Praça da República, em contraste com a manhã seguinte.
Chove em Ierevan, uma chuva teimosa que se desprende de um céu da cor do betão, produzindo uma orfandade naquele que é o coração da antiga Erebuni. Da praça, partem ruas e avenidas de cara lavada que acolhem centros comerciais, residências de luxo e lojas de marcas famosas que seduzem os jovens e não passam de uma miragem para aqueles que mais dificuldade sentiram para se adptarem aos novos ventos que sopraram após a independência da antiga União Soviética, em 1991.
Para melhor me identificar com os caminhos tortuosos da história do país e com as origens deste povo milenário, de uma época em que não era a república encolhida entre a Geórgia, a Turquia, o Irão e o Azerbaijão (não mais de 30 mil km2, três vezes menos do que Portugal), mas a Grande Arménia, orgulhosa do seu vasto império, das suas magnificentes igrejas e dos seus majestosos castelos, embrenho-me, a meio da manhã, pelo museu Matenadaran. O edifício, fiel ao estilo soviético, é dedicado a Mesrob Masthots, o criador, no século V, do alfabeto da língua arménia, ainda hoje em uso, e abriga, entre as suas paredes, uma das melhores colecções de manuscritos do mundo.
Ierevan é uma cidade antiga mas sinto dificuldade, mesmo ao fim de três dias na capital, em aceitar que em 2018, em meados de Outubro, se prepara para celebrar 2800 anos de história (foi fundada em 782 a. C.) e mais ainda quando perscruto os imóveis envidraçados que rivalizam com a arquitectura soviética debruçando-se sobre ruas pedonais com as suas esplanadas cheias de jovens.
Ao início da tarde, subo à colina de Tsitsernakaberd e por ali permaneço, visitando o museu cujas fotografias retratam os massacres de 1896 e 1909, a detenção e o assassinato de líderes políticos e intelectuais e a agonia do genocídio entre 1915 e 1922 que a Turquia nunca reconheceu, ao contrário de Orhan Pamuk (e, mais recentemente, do Papa Francisco) que, em 2005, afirmou a um jornal suíço: “Um milhão de arménios e 30 mil curdos foram mortos nestas terras mas ninguém, a não ser eu, ousa admiti-lo.” Ameaçado física e juridicamente, o escritor turco, Prémio Nobel da Literatura em 2006, baseou-se no cenário de Kars, capital de um reino da Arménia no século X, para escrever o romance Neve. Kars significa neve, Kars integra, desde 1921, território turco. Até 1993, ano em que foram encerradas as fronteiras, Kars estava apenas a uma hora de carro da Arménia. Agora são necessárias mais de doze horas para deixar de ouvir o chamamento do muezzin e escutar, somente a 30 quilómetros de distância, o som produzido pelos sinos das igrejas.