Até onde é que vai a luz de um farol? Até que ponto pode a cultura unir – e desenhar – um território? As duas perguntas parecem não ter qualquer relação entre si mas são o ponto de partida para o projecto 23 Milhas, que está a transformar a paisagem cultural de Ílhavo.
Vinte e três milhas é o alcance da luz do farol a que uns chamam de Aveiro, outros de Ílhavo e outros até da Barra, a praia onde realmente se encontra. É ele, portanto, o ponto de partida desta história. Uma revoada de vento levanta-se precisamente quando saímos do carro e, inclinados, tentando proteger os olhos da areia que voa, quase não acertamos com a porta na qual nos aguarda, sorridente, o faroleiro chefe, Nogueira da Silva.
Subimos até ao topo, mais de 200 degraus, com calma, parando de vez em quando para recuperar o fôlego. Lá em cima, o vento abranda alguns minutos, o suficiente para sairmos para o exterior e ver a vista a toda a volta: a barra da ria de Aveiro, que o farol guarda, a praia da Barra, a Gafanha da Nazaré, lá mais ao longe a Costa Nova e Ílhavo, onde a vista já não alcança.
Este é um território que se espalha, que não tem um centro evidente. E isso foi uma das primeiras coisas que chamaram a atenção de Luís Sousa Ferreira quando aqui se instalou. Luís é o responsável pelo 23 Milhas e chegou a Ílhavo no ano passado, vindo da experiência do Bons Sons, o festival que criou na aldeia de Cem Soldos, em Tomar.
“Venho de uma lógica de cidade com um castelo, um rio, uma zona central”, explica. Ao deparar-se com um “território policêntrico, com duas cidades e vários pontos de interesse turístico fora dessas cidades”, achou “fascinante” a ideia de um roteiro que cruze estes diferentes espaços.
Fez como costuma fazer nos projectos em que já trabalhou: foi à procura das histórias dos lugares. São elas que vão servir de base ao trabalho de programação cultural. Por outro lado, foram-lhe confiados quatro edifícios em quatro sítios diferentes: a Casa da Cultura, em Ílhavo, a Fábrica das Ideias, na Gafanha da Nazaré, o Laboratório Artes, na Vista Alegre, e o Cais Criativo, na Costa Nova.
Mas havia um problema. “Existia uma relação que fazia pouco sentido entre os dois centros culturais, de Ílhavo e da Gafanha. A Gafanha era um espaço que abria para três ou quatro festivais por trimestre”, explica Luís. “Era uma overdose de espaços para uma região que, num raio de 30 quilómetros, é já muito bem dotada de equipamentos culturais. O que quisemos foi, por isso, pensar a raiz e o papel de cada espaço.”
Na realidade, o que interessa aqui não são tanto os edifícios, é muito mais o lado imaterial. “É um projecto que não tem um lugar, um edifício, tem vários, e a nossa acção é feita muitas vezes fora dos edifícios, o que, do ponto de vista cultural, é muito interessante: não trabalhar um edifício mas o dia-a-dia, ir ao encontro das pessoas”, diz Luís. Foi falando com elas que começou a perceber o que faz a identidade de cada um destes lugares.
A Gafanha da Nazaré, por exemplo: “Aqui não se pode pedir muito à arquitectura, a Gafanha foi mal construída, sem planeamento. Mas tem pontos de interesse que não estão nada explorados. Lembro-me que uma das coisas que me marcaram aqui, na Avenida dos Bacalhoeiros, foi o impacto dos navios. Na altura em que vim estavam imensos aportados, têm uma escala monumental. A ria estava cheia, galgava o cais e eu, que sou do interior, senti que aqui, nas narrativas, nas histórias, as pessoas começam sempre por falar do mar. Há uma escala monumental e heróica do mar.”