“Koc untuk wanita sahaja”. A frase, em língua bahasa, está escrita numa das carruagens prestes a partir para as Batu Caves, um santuário hindu situado a pouco mais de uma dezena de quilómetros de Kuala Lumpur. A tradução em inglês (“Coach for ladies only”) aparece com o mesmo grafismo na carruagem seguinte e talvez se possa ler como um dos muitos signos contrastantes da Malásia moderna, um país compósito, feito de múltipla gente, com as suas diferentes culturas, religiões, templos, os seus distintos modos e falares. É um país oficialmente islâmico, hospitaleiro e afável — confirma o viajante ao receber no passaporte a estampa tintada que lhe permite por lá viajar de fio a pavio durante três meses —, um território onde reina a paleta de identidades evocada pelo slogan (lançado pelo governo em 2010 para promoção da harmonia étnica e religiosa) que se vê por toda a parte e que propõe e celebra unidade na diversidade: “1 Malaysia”.
Para as Batu Caves vai-se num sentido. A viagem segue outro, por ora, diverso. Vamos para Norte, na direcção do velho sultanato de Perak, a ver da Malásia profunda, não ainda a das aldeias só por um triz não encafuadas na selva equatorial e jazentes na beirinha de rios úberes, mas sobretudo a intermédia, a de um universo semi-rural, povoado por amáveis cidadezinhas, pontos coloridos de um mapa onde a população malaia sobressai expressivamente do mosaico em que convive com a chinesa e a indiana.
Partimos da mais antiga estação ferroviária de Kuala Lumpur, um grande edifício do tempo da administração britânica, arquitectura de timbre colonial com torreões a emular islâmicos minaretes. O comboio é uma composição formada por carruagens de ar robusto, espaçosas, apetrechadas com umas bem confortáveis e soporíferas poltronas.
Deixados para trás os arrabaldes da capital, vem a Malásia verde dos extensos palmeirais que dela fazem o maior produtor de óleo de palma do mundo. E para as bandas orientais, o azul das cordilheiras centrais onde nascem os rios malaios e onde se alcandoram as belíssimas terras altas das plantações de chá.
O New Straights Times é o companheiro de viagem. Folheio a edição do dia à procura de notícias de Malaca — na véspera a governadora visitou o Portuguese Settlement, o bairro português, discursou com uma certa veemência em bahasa — algumas palavras soaram familiares (sekolah, escola, por exemplo), herança do falar luso —, exaltou a diversidade humana e cultural do país e, no fim da festa, a tarde, que se pôs com amuos e quase deu em chuvosa, rejubilou com danças e cantorias que pouco tinham de malaias: viras e malhões. Tal e qual, na original língua lusitana.
O comboio segue devorando carris e o tempo esfia-se como farrapos de nuvens. Passamos por Ipoh, capital administrativa e económica de Perak, e logo, logo, entre andaimes de obras, o relógio da estação de Kuala Kangsar marca a hora da chegada: 12h15. Lá fora não há táxis — só às vezes, e poucos, adianta um cavalheiro aprumado que pode muito bem ser o chefe da estação. Um indiano com barbicha de prata e turbante, passageiro também recém-desembarcado e com cara de quem veio do Punjab, faz um sinal, sorri um tranquilizante dont’ worry. O primogénito vinha a caminho, não tardou, aliás, e uma carripana um tanto avançada na idade recolheu-nos no largo da estação, mais as malas, as mochilas e a infinidade de embrulhos que Mr. Sooran trazia consigo. Dez minutos depois estávamos às portas do Double Lion Hotel.