Fugas - restaurantes e bares

Botecos no Rio: “Eu não resisto aos botequins mais vagabundos”

Por Alexandra Prado Coelho (texto) e Nelson Garrido (fotos)

É com as palavras que dão título a este artigo que canta Moacyr Luz no samba Pra que pedir perdão. E foi com esse mesmo espírito que andámos pelo Rio de Janeiro percorrendo os botequins pé-sujo, guiados também por um sambista, Gabriel da Muda, e um escritor e boémio, Marechal Costa e Silva. Um roteiro alternativo dos botecos cariocas.

Um artigo sobre os botecos do Rio de Janeiro? E por onde começar? Um email para uma pessoa conhecida no Brasil e chega a primeira lista – com muitas sugestões e os incontornáveis clássicos: a Bracarense, o Bar Urca, o Jobi, o Cervantes, o Bar Lagoa. Podíamos ter ido por aí, mas mais alguns contactos, ajudas e conselhos, e vamos parar às sábias mãos do jornalista e escritor Álvaro Costa e Silva, o Marechal, que está precisamente a escrever um Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro, que passa, como não podia deixar de ser, pela boémia e a vida de boteco.

Veja-se o que escolheu logo para a letra B: Balcão – “Hemingway escrevia de pé e nu. Guillermo Cabrera Infante, apenas nu. O carioca muitas vezes come de pé, embora vestido. Em especial na hora do almoço e na correria e no formigueiro do Centro da cidade. E não come, necessariamente, mal. Em certos botecos, a arte de roçar cotovelos no balcão, enquanto se mastiga um sanduíche de pernil com molho de cebola — sem sujar a camisa — é um prazer.”

Marechal seria a pessoa certa, garantiram-nos. Mas ele acha que há uma pessoa ainda mais certa e no email de resposta escreve: “O Rio é um rio de botecos (alguns ainda com jeito de tasca portuguesa). De uns tempos a esta parte, surgiram na Zona Sul alguns botecos mais bonitos, ditos de ‘grife’, que não me seduzem mas vivem cheios de jovens, ainda mais nesta época do ano. Eu particularmente gosto de beber e conversar com os amigos numa região do velho Centro do Rio que vivia abandonada e hoje renasceu. Falo das ruas do Ouvidor e do Rosário, próximas à Praça 15 e ao Paço Imperial. Lá, há ao menos quatro bares – próximos uns dos outros – que valem uma visita.” Mas, acrescenta, “mil vezes melhor cicerone do que eu é o Gabriel Cavalcante, ainda por cima um excelente cantor de samba”.

Sem problema. Encontro marcado com ambos na Toca do Baiacu, em plena Rua do Ouvidor. É o início de um roteiro por alguns dos botecos “pé-sujo” do Rio, longe dos bares de grife da Zona Sul (esses também estão em todos os guias, por isso não há como escapar). O Marechal chega primeiro. “Essa rua aqui é muito famosa durante o século XIX”, conta. “No outro troço, do lado de lá, ficavam as lojas de modistas e as livrarias de que falava Machado de Assis. Depois abriram a Avenida Rio Branco, e este troço onde nós estamos foi ficando mais desprezado, foi sempre mais ligado aos músicos, à boémia”.

Antes do declínio, era aqui que se instalavam as modistas francesas que toda a alta sociedade do Rio procurava, foi ali que nasceu a Academia Brasileira de Letras e vários movimentos literários e políticos; foi na Ouvidor que surgiram jornais e a primeira vitrine, o primeiro cinema e até o primeiro telefone. Foi ela a primeira a receber luz eléctrica.

A rua é estreita e estamos sentados no meio dela, nas mesas da Toca do Baiacu. “Era o pior botequim, mas como diz o samba [de Moacyr Luz], ‘eu não resisto aos botequins mais vagabundos’”. Quando parecia que a Toca do Baiacu estava condenada, “o Marquinhos, que era um frequentador, decidiu comprá-la”. Marquinhos, o próprio, levanta-se de outra mesa onde estava a conversar, vem cumprimentar-nos e partilhar a sua filosofia: “Eu gosto de um pé-sujo, de simplicidade, de uma orelha, de um pé de porco. Gosto da gordura. Bar pé-sujo é o que oferece moela cozida, um bom torresmo, ovo cozido rosa. O resto que tens hoje são perfumarias travestidas de bar, pratos que parecem mais uma penteadeira de moça. Bar não é para ter linguiça de frango light, é para ter linguiça de porco”.

E tal como a Toca resistiu, sem mudar o seu estilo pé-sujo, também a Rua do Ouvidor não só resistiu como até renasceu nos últimos tempos. E essa é uma história que passa por Gabriel Cavalcante, também conhecido como Gabriel da Muda, que, por acaso, acaba de chegar, grande, sorriso franco, aperto de mão forte. “Ali à frente tem a Livraria Folha Seca, que é um lugar que atrai jornalistas, escritores, tem lançamento de livros, especialmente sobre o Rio antigo, samba, música, futebol, comida. Há uns tempos começou a ser feito aqui um samba ao sábado. O samba do Gabriel [Samba da Ouvidor] foi uma coisa que nasceu espontânea”.

E a Rua do Ouvidor, que aos sábados parecia morta, renasceu. Gabriel entra na conversa. “Esta é uma área muito tradicional do Rio, por ser o centro histórico da cidade, onde tudo começou. No início do século era um lugar frequentado por barões e intelectuais, era a rua preferida do Pixinguinha, que foi um dos grandes músicos do nosso país.”

Durante os dias de semana, a Rua do Ouvidor vive intensamente a happy hour. “As pessoas saem do trabalho e vêm cá para beber, comer e falar da vida alheia. De segunda a sexta é uma loucura”, diz Gabriel. Agora, aos sábados “você pode vir na nossa roda do Samba do Ouvidor, mas agora tem também uma roda de choro e mais outra de samba. Quando começámos a nossa roda, chamavam a gente de maluco, diziam que não ia dar, os bares não abriam”. Mas deu e foi um sucesso.

Deixamos a Toca do Baiacu – “um bar à moda do cliente, onde se eu quero uma anchova na brasa e não tiver, ele vai dar um jeito, não tem mas ali na peixaria tem, então vou comprar e fazer para você”, resume Gabriel – e vamos beber um chope ao Al-Farabi, um casarão centenário, entre o Centro Cultural Banco do Brasil e a Praça XV, que é bar, restaurante e alfarrabista (um sebo, como se diz no Brasil), onde também se descobrem raridades em vinil. “Chego aqui, procuro algum disco e acabo bebendo uma cerveja, aproveitando que aqui tem umas cervejas diferenciadas”, diz o sambista. “Um dos meus programas favoritos é sair de casa às onze da manhã e ir rodando pelo Centro do Rio de Janeiro. Aqui a cada esquina tem uma história, cada balcão tem uma vida por trás. Você chega no Paladino, que é um bar centenário que serve a mesma coisa há 100 anos, a fritada de bacalhau ou a fritada mista, ou o pão de provolone com presunto alemão. No Lord Bar, na Rua da Quitanga, é o pão com linguiça, a carne seca, o chope gelado, e em frente uma banca do jogo do bicho e um barbeiro para homens.”

Seguimos ainda pelo Centro, até ao Adelos, “um galeto aqui ao lado, pé direito alto, maravilhoso, comandado pelo Carlinhos, que é o português mais carioca” que Gabriel conhece. Marechal intervém para lembrar que, de qualquer forma, botequim do Rio é herança de português. “Não tem como falar da história dos botecos aqui sem falar dos portugueses.”

O Adelos (o nome relembra que aqui, no final do século XVIII, ficava o Beco dos Adelos, onde se vendiam produtos em segunda mão) é, de facto, um sobrado lindo, que contorna toda a esquina e se alonga em muitas portas-janelas, com o Carlinhos a receber-nos à porta cheio de simpatia, brincando com o Marechal por andar desaparecido (é o livro que rouba todo o tempo, explica este). Tempo para comer umas asinhas de frango e mais uns chopinhos e a viagem continua.

Na verdade, breve interrupção aqui, depois de uma aventura com um carro que mal anda, quanto mais ter que subir uma calçada do Rio, e encontro marcado para a noite seguinte, já sem a companhia do Marechal, para conhecer o outro território de eleição de Gabriel, o seu bairro da Tijuca, e os seus botecos do coração: o Bar do Momo e o Bar da Gema.

Começamos pelo Da Gema, também numa esquina, espaço aberto para a rua, mesas completamente cheias, ambiente de festa – até porque nessa noite são os anos da própria dona, Luiza Sousa, que atende às mesas e ao balcão, faz as contas, apresenta os pratos e ainda se junta aos festejos do seu próprio aniversário.

Ficamos ao balcão, mesmo junto à cozinha, o lugar favorito de Gabriel. E o lugar para se ficar em qualquer boteco, segundo o Dicionário Amoroso do Rio de Marechal, que, na mesma entrada Balcão, defende assim a sua convicção: “O cartunista Jaguar, um campeão dos balcões cariocas, dono de calos no cotovelo de tanto debruçar-se em legítimos mármores dos mais memoráveis botequins, ensina as vantagens do exercício de beber e comer em pé: você é servido mais depressa, fica mais fácil driblar os chatos, pode-se escolher o tira-gosto de melhor aparência, filar uma lasquinha da porção de presunto de perna e fiscalizar, num espichão de pescoço, se o cara está tirando direito o chope. E, não por último, conservar a silhueta sem barriga.”

É então encostados ao balcão que provamos as especialidades, que saem da cozinha das mãos de Leandro Amaral, todas deliciosas, a começar pelo pastelinho de feijoada, a mítica coxinha de galinha da Gema, e passando logo de seguida para a polenta frita com rabada que (e aqui nada substitui as palavras de Gabriel) “é de comer ajoelhado, chorando e agradecendo a Deus”.

Mas a noite é curta para tanto boteco e ainda falta ir ao Bar do Momo, também na Tijuca, um pouco mais à frente. Aí ficamos nas mesas na rua mas não paramos de entrar e sair da cozinha para ver o que o Toninho está a preparar num espaço minúsculo, nas grandes frigideiras que tem ao lume.

Mais uma vez, o melhor é dar a palavra a Gabriel: “Este é outro bar à moda do cliente, não tem nem cardápio. Você tem que chegar no Toninho, neto de português, e falar ‘O que é que você tem aí para mim?’. Aí ele vai falar ‘O que é que você gosta?’. Tem um bolinho de arroz que eu considero o melhor do planeta, não tem outro igual. Tem um sanduíche de contrafilé com queijo e molho de gorgonzola que é espectacular, tem uma fritada e camarão com gorgonzola, uma fritada de carne assada, tem um jiló… olha, o jiló é algo carioquíssimo. Toda a gente fala que não vai gostar e eu digo ‘Se não gostar eu vou a pé daqui para a Bahia agora’. Não quero nem saber.”

Toninho traz o jiló (e só podemos dizer que, mais uma vez, Gabriel não teve que ir a pé até à Bahia) e pedimos mais uma rodada de batida de maracujá e a conversa continua noite dentro.

Será que com tanta transformação no Rio, com a Copa do Mundo e as Olimpíadas, mais a invasão de turistas, os botequins pé-sujo estão ameaçados? “Eu sou saudosista”, diz Gabriel. “Sou aquele cara que tem um ideal, uma utopia, e a gente fica sempre com medo de que alguma coisa ruim vá acontecer e de uma hora para a outra tudo vá acabar. Mas tenho fé que não vai, o carioca não vai deixar. No outro dia, falando com um amigo, ele disse uma coisa que eu guardei: não adianta você estar num restaurante de cinco estrelas; se você estiver com chinelo no dedo, bebendo cerveja, aquele restaurante vai virar botequim da noite para o dia. Isso traduz o meu sentimento – podem tentar acabar com isto, mas o carioca não vai deixar.” Porque, afinal, o botequim é um estado de espírito.

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