Uma vez por ano os holofotes convergem sobre Lazarim. Desperta o que, no resto do ano, é uma plácida vila rural de 700 habitantes, aninhada nos contrafortes da serra de Montemuro, a dois passos da cidade de Lamego. A altura é agora, ou seja, o momento alto no calendário de Lazarim é mesmo o Entrudo. Os seus festejos são, na verdade, uma história tão antiga que ninguém se atreve a adivinhar-lhe as origens. Passou, isso sim, por várias crises, dando-se particularmente mal sob regimes políticos de fraco sentido de humor.
O Estado Novo não encorajou o que, para todo o efeito, é um ritual pagão de conotações subversivas, mas também não conseguiu erradicá-lo. Tolerou-o como diversão grosseira e desqualificada, até que o espírito do pós-25 de Abril instituiu a moda do regresso à terra e a reabilitação das tradições rurais. Estudiosos e académicos não tardaram a desembarcar, seguidos da comunicação social decidida a colocar Lazarim no mapa da cultura tradicional e nas rotas do turismo das raízes.
Hoje o Carnaval atrai centenas de forasteiros, funcionando como principal ou quase exclusivo chamariz desta remota vila da Beira Alta. Não será, porém, uma coisa tão etno-purista quanto provavelmente desejariam os nostálgicos do primitivo e os amantes do exótico. Desde o relançamento, nos inícios dos anos 80, o ciclo carnavalesco tem sofrido sucessivas alterações, fruto das vontades dos actores locais, mas também das próprias oscilações de gosto dos forasteiros. Esta série de mutações acaba, no entanto, por ser uma prova de vitalidade e no essencial o Carnaval de Lazarim conserva-se fiel à sua própria tradição.
Diabos à solta
Demónios e figuras grotescas, de preferência com cornos bicudos, são a imagem de marca do Carnaval de Lazarim. Podem aparecer esporadicamente aqui e ali durante todo o ciclo, mas o seu ponto de encontro anual é ao princípio da tarde de Terça-feira Gorda, na Praça do Padrão, quando se ouvem os tambores a rufar para dar início à fase crucial dos festejos. Por acaso, ou talvez não, é nessa altura também que se nota maior concentração de gente de fora, denunciada por toda a sua bagagem audiovisual, num espectro que vai de telemóveis baratos a pesadas câmaras profissionais.
É como um encontro de paparazzi amadores, com a diferença do objecto dos disparos não ser gente conhecida, mas populares que por um par de horas se divertem a dissimular a sua identidade. Também não há passerelle nem cordão de segurança, uma vez que os mascarados circulam livremente, mais usualmente aos pares ou em pequenos grupos, forçando o seu caminho entre a multidão. Chamam caretos a esses populares que se fantasiam com máscaras, caretas ou caraças, localmente esculpidas em madeira de amieiro. Ou melhor, caretos são os personagens masculinos, enquanto aqueles que representam figuras femininas recebem a designação de senhoritas.
Uns e outros conjugam o uso das máscaras com guarda-roupa inusitado, fatos de palha, barbas de milho, folhas secas e trapos velhos, complementados por cajados, vassouras, foices e afins. Noutros tempos, estas fatiotas eram decoradas com cobras, salamandras e ratos mortos (de preferência ainda a escorrer sangue), usados como protecção pelos mascarados, de modo a afugentar as investidas dos mais atrevidos. As senhoritas, por outro lado, costumavam passear-se com cestos de palha, cheios de farelo de milho, farinha e ovos podres, destinados a serem lançados sobre os abelhudos e mais alvos da sua predilecção. Agora os animais mortos já não andam ao peito, mas passaram a ser representados nas próprias máscaras, enquanto a pulverização de dejectos sobre a assistência tende a desaparecer do programa.