Fugas - viagens

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Índia: Andar muito, devagar

Nos restaurantes já não há kashmir pulau -arroz de frutos, mas passou a haver gelado kulfi; ouvimos outras línguas e por vezes o inglês não tem utilidade porque poucos o falam; a mesma religião apresenta preceitos e evidências diferentes do que vimos 500 km atrás. Comentamos: e se estivéssemos de jipe? Sensação de perda, desapareceria metade da graça. Os imprevistos, as dificuldades e as soluções é que marcaram a viagem. De acasos surgem boas surpresas. O turismo de massas é aborrecido porque aposta na máxima programação, afasta o acaso com uma fórmula estanque, onde todos vêm o mesmo, sem nuances.

Três rodas, duas metades

Durante vários dias da viagem, problemas mecânicos no nosso riquexó fizeram-nos perder muito tempo e alguma paciência.

Desesperávamos quando o veículo se engasgava até parar e isso aconteceu muitas vezes.

Após uma pausa para arrefecer, voltava a andar até se engasgar de novo, cinco, 50 ou 100 km depois. Não havia um padrão para estas quebras. As causas discutiam-se à beira da estrada com outras equipas era prática comum parar para oferecer ajuda quando se via outro riquexó na berma. Havia quem se queixasse do mesmo. Os entendidos atribuíam o problema às impurezas que se acumulavam no carburador. Em seis dias limpámos o carburador cinco vezes, a pensar que cada uma delas seria a última. Ao sétimo dia comprámos um filtro para o carburador, grande de mais, mas era o único disponível, para o aplicar havia que fazer adaptações: cortes e enxertos, coisas de especialistas. Resolvemos guardá-lo e logo se veria. Voltamos à estrada, são dez da manhã do sétimo dia de viagem, até ao décimo quinto e último dia da viagem o riquexó nunca mais teve qualquer problema. Tão inexplicável o problema como a resolução.

A partir daí passámos menos tempo na estrada e ganhámos qualidade de vida. Comprar o filtro foi um momento mágico que dividiu a viagem em duas metades.

Para trás ficaram as regiões mais frias e interiores, e com elas os casacos e os fatos de macaco que deixámos de usar; para trás ficou a angústia dos achaques do riquexó e os dias na estrada de sol a sol. Essa etapa terminou em Ganapatipule, onde há um templo de Ganesh junto a uma praia linda quase sem ninguém. Comemos camarões panados e bebemos gin com limonada, festejámos a chegada ao mar. Não sabíamos, mas festejávamos a passagem para a outra face da mesma moeda: o Verão, dias mais curtos na estrada, banhos de mar, e Cochim cada vez mais perto. Sem problemas mecânicos, e de manga curta, a vida ficou mais bela.

Histórias na bagagem

Entre os camelos do deserto do Rajastão e a ria de Coxim, ladeada por palmeiras que abrigam pássaros de canto exótico, tudo mudou, quilómetro a quilómetro.

Poderá ser "defeito profissional", mas pareceu-nos que, num país com tanta diversidade, a única entidade que se manteve fiel ao mesmo padrão de Norte a Sul foi o comportamento na estrada, a condução imprudente e as excepções que, todas juntas, fazem as regras. Há mil milhões de pessoas na Índia, o país não pode esperar. Se os camelos e os rebanhos não circulassem nas auto-estradas, se conduzir em contramão e furar por qualquer lado não fosse consentido, o crescimento da economia indiana cairia dois por cento. A Índia não pode parar, todos tentam chegar primeiro para nenhum ser o último.

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