Pessoa é um palco
"Há um homem magro que sai do São Carlos e acende o charuto, aproveitando a brisa amena libertada pelas luzes a gás do foyer. O tempo está incerto entre duas nuvens densas." Assim abre o livro de Marina Tavares Dias e é no exacto ponto geográfico evocado que nos encontramos. Mas este "homem magro" não é o poeta. É o seu pai. Terá sido, decerto, uma confluência de factores a levar Pessoa a ter sido tanto e tantos, mas que dizer desse (chamemos-lhe) acaso de nascer frente ao Teatro de São Carlos? O pai, Joaquim Pessoa, trabalhava no Ministério da Justiça mas era nas artes de crítico de ópera que brilhava. Alguém acreditará que não foi por isso que alugou o quarto andar do n.º4 do largo do teatro nacional lírico?
É nesse mundo que Pessoa nasce e vive até aos seus cinco anos, quando o pai morre. "Estamos num largo que, por causa das suas dimensões e de ter o teatro, não terá sido dos que mais mudaram", sublinha Marina. O que nos permite, de facto, a viagem no tempo. Podemos sentar-nos nos banquinhos laterais e recriar um pequeno Pessoa a conjecturar lirismos. "Aquele poema, O Maestro que Sacode a Batuta [em que uma criança brinca com uma bola], é nitidamente o miúdo a brincar neste largo", lembra. É, aliás, o mesmo poema em que o mestre escreve "Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância".
No prédio em que nasceu, com natural direito a placa comemorativa, vê-se a entrada para uma sociedade de advogados e o rés-do-chão é agora corrido a montras deluxe (Marc by Jacobs, por sinal). Numa das montras, a marca decora-se com uma amarela vaca (criativamente sagrada e em tamanho quase real) que observa a "outra" estátua de Pessoa. Aqui, o poeta de bronze, obra do belga Jean-Michel Folon colocada no largo em 2008, está em pé no seu rasteiro pedestal mas não tem cabeça; ou melhor, a cabeça é um grande livro que tem escrito "Pessoa" na capa. Marina chama-lhe "a estátua Facebook" e mais não diz. Da casa, "infelizmente, só restam as paredes", lamenta. Não é caso único e o círculo fecha-se na Casa Pessoa: o mesmo "acontece com a casa onde ele morreu, em que restam a parede e um lanço de escadas". "Mas, enfim, pelo menos do lado de fora as pessoas podem identificar-se com isso. E as pessoas a maior parte das vezes apenas se fazem fotografar pelo lado de fora...", assinala.
Ao contrário deste clássico largo, muitas outras moradas pessoanas são hoje irreconhecíveis. "Quer por mudanças naturais e alterações dos costumes, quer por mudanças forçadas através de decisões que foram erradamente tomadas pelos vários poderes, da Lisboa do Fernando Pessoa muito pouco resta". "No fundo, o que a maior parte das vezes temos são as fachadas e algumas delas a cair."
Daí o guia ser uma viagem em si, nas suas cerca de 120 páginas - incluindo tradução em inglês. "O que tentei foi que as pessoas se situassem e se colocassem lá dentro através de uma postura quase... não de ficção, mas de uma certa romantização - passo a expressão, talvez exagerada - do quotidiano, quer do tempo do pai de Pessoa, quer das várias épocas que o poeta atravessou em Lisboa", o "que era a cidade desse tempo e o que via nas ruas nessa altura".