Desaguamos no Chiado, entre a azáfama de turistas e passeantes, para procurar a nossa guia. No palco que é a esplanada do café A Brasileira, senta-se, de bronze investido, Fernando Pessoa. Perna traçada, uma mão em movimento aéreo, outra em repouso sobre a mesa, com uma cadeira vazia ao lado, incoerentemente aberta a qualquer companhia. Os turistas acorrem à foto com o poeta como abelhas ao mel. Sentam-se no seu colo, acariciam-lhe as mãos, o rosto. Beijam o poeta. "Olá, sabes quem é este senhor?", perguntamos a uma jovem após o seu sorriso de esfinge para a câmara. "No, pero es una estatua preciosa", há-de responder-nos a espanhola Sara.
Esta estátua tornou-se um paradigma do turismo pessoano. Dos labirintos mais interiores da criação, puxou-se o poeta até ao show total, elevando a figura a uma das mais fotografadas do país. Para mais, é uma estátua no centro de um certo universo português: ainda há pouco surgia por todos os jornais e ecrãs, espectadora de uma carga policial sobre manifestantes. Aliás, logo após a inauguração, veria ser destruído o resto do Chiado em que Pessoa nasceu e viveu. Criada por Lagoa Henriques, foi colocada em Junho de 1988 - o Chiado arderia em memórias dois meses depois.
Ao lado do poeta de bronze, passa Marina Tavares Dias, jornalista, olisipógrafa, especialista no modernismo e, entre outras valias e mais de duas dezenas de obras sobre a cidade (a mais célebre será a série Lisboa Desaparecida), autora de nova e recente edição de um guia que traça os percursos do Pessoa pela capital. Nós, Marina e a Estátua formamos um triângulo no Chiado de hoje. Mas, tal como no livro Lisboa nos Passos de Fernando Pessoa, este é um encontro e um passeio a vários tempos e vários eus. A obra - "um antiguia turístico", diz-nos Marina - pretende inserir o viajante numa "Lisboa tal como Pessoa a conheceu", delineando-lhe os mapas pessoais e recorrendo a perto de uma centena de imagens históricas. E a Lisboa de Pessoa, poderá não parecê-lo, é imensa.
Nascido em 1888, o poeta passou por umas duas dezenas de residências lisboetas (além de alguns anos de juventude sul-africana), a que se juntam as de muitos trabalhos ou tertúlias. Porém, embora as suas regiões abarquem tanto a área da Almirante Reis como de Campo de Ourique (a última morada e onde se encontra a sua casa-museu) ou mesmo Benfica, nunca a alma pessoana se afastou da sua aldeia, basicamente formada pela esquadria da Baixa orlada pelo Chiado e Rossio. "O Chiado de hoje pouco tem a ver com esse tempo", resume, sem surpresa, Marina. "Quando Pessoa nasceu era o Chiado dos grandes hotéis, das livrarias célebres - que existem ainda algumas -, das modas mais arrojadas. Quando voltou da África do Sul, era já dos grandes armazéns à parisiense, dos Armazéns do Chiado, do Grandella, etc. Um Chiado comercial burguês e já não o das elites, da nobreza." Enquanto conversamos, há sempre alguém a abraçar o nosso Pessoa de bronze. "Se repararmos, os sítios onde as pessoas se apoiam - as mãos, a dobra da perna - estão muito mais polidos." "É onde as pessoas mais tocam", nota.