Mistério maior, da dimensão de uma coincidência pessoana, encontramos mais à frente, na Rua dos Douradores, epicentro do Desassossego. O restaurante Antiga Casa Pessoa foi fundado no século XIX. O poeta "vinha aqui almoçar habitualmente". Mas o baptismo da casa, explica Marina, "nada tem a ver com Pessoa ou com a sua família, já se chamava assim nessa altura". A coincidência só podia agradar-lhe... Lá dentro, curiosamente, não há referências ao poeta nem ao seu turismo nem pratos "...à Pessoa". "Temos é uns filetes de pescada muito bons, um bom linguado, um cocktail de camarão", dir-nos-á, numa outra visita, o senhor Carlos, empregado com muitos anos de restaurante. E o senhor Carlos guarda-nos um outro mito, que pedimos para repetir, que não contradizemos (e quase esperamos que ninguém contradiga) e que quase nos convenceu: "O senhor Pessoa vinha cá almoçar mas era um senhor que se chamava Bernardo que lhe pagava os almoços. Porque ele, coitadinho..."
Mausoléu das Arcadas
O nosso turismo pessoano pela Baixa termina no tal café (restaurante) histórico do Terreiro do Paço, Tejo e tudo. Se a meio do passeio parámos no Rossio frente às memórias de um primeiro Martinho, desaguamos agora no Martinho da Arcada, antes Café Neve ou Café das Arcadas. Marina explica: os dois tiveram o mesmo dono e acabaram por partilhar nome. No primeiro, davam-se as tertúlias da primeira grande fase produtiva de Pessoa, a da revista Orpheu. Neste, agora uma das mais célebres casas pessoanas, tornada ex-líbris turístico e destino de romarias, o poeta vinha já nos últimos anos de vida. Passamos a esplanada e entramos pela sala do restaurante, decorada a fotografias do poeta (incluindo algumas das célebres imagens captadas no próprio espaço) e de outros ilustres. António Sousa, actual gerente, cumprimenta a pessoana guia com deferência e leva-nos até ao canto, onde uma velha mesa de café alude àquela em que se sentava e em que foi fotografado o poeta. Uma chávena e pires aguardam, vazios, tal como um chapéu preto. Sentamo-nos à mesa, honra rara, para também beber um café enquanto o senhor António aponta para a memorabilia e lista os eventos e visitas mais ou menos célebres que aqui chegam para saudar o poeta. "No outro dia, uma senhora... até lhe vieram as lágrimas aos olhos ao ver a mesa." Pessoa frequentou muito o café nos últimos 15 anos da sua vida, recebia aqui companheiros de tertúlias, ficava para jantar com o pessoal e proprietários antes de seguir de 28 para Campo de Ourique. O Martinho, apesar dos receios de término, resiste historicamente do alto dos seus mais de 230 anos. "Ao contrário de outros, que vimos e desapareceram, por sorte ainda o temos", conclui Marina, antes de voltarmos aos passos perpétuos pela Baixa.
E o que nos diz a autora deste "antiguia turístico" de todo este turismo pessoano? É "quase inevitável". Não deixa de ser "engraçado" ver que há "ímanes, blocos, sacas, t-shirts e tudo isso". Ao mesmo tempo é "contraditório" mas talvez o poeta "tivesse uma parte que achasse graça", sorri. Ainda assim, não deixa de ser intrigante que, sendo ele "uma pessoa tão avessa ao mundo exterior e às aparências, se tivesse transformado num logótipo da cidade", remata.