Dizem que todos se conhecem em Montemor-o-Novo. Não sei. Mas posso garantir que Susana Picanço conhece todos os montemorenses. Natural da cidade que abre as portas ao Alentejo e produtora de O Espaço do Tempo, o projecto de residências artísticas criado pelo bailarino e coreógrafo Rui Horta, Susana foi a primeira pessoa com quem falei, ainda por telefone, antes de chegar em Montemor-o-Novo. Atendeu ao segundo toque. Não apenas sabia quem eu era e o que andava a fazer juntamente com os meus companheiros de viagem (tem acompanhado a “Volta” na Fugas) como também o que pretendia. Sugeriu-me uma série de pontos de interesse. Todos certeiros.
Um restaurante? “O Monte Alentejano, da Dona Maria do Céu!”. Obrigado. “Uma loja de mel, interessa-te? Existe uma, a da Dona Custódia Leal”... Boa, obrigado. “E uma adega? Tens a Quinta da Plansel, da Dorina”. Impecável. Obrigado. “Para dormir’?”.
“Bom, para dormir tinha pensado ficar aí no Convento da Salvação, dentro do Castelo, onde vocês funcionam”, arrisquei.
Com um telefonema, Susana Picanço resolveu o assunto e quando estacionei o Citroën C4 Cactus em frente ao convento, já ela me esperava à porta e tinha reservado um quarto, entre os 13 existentes, e colado o meu nome na porta. A Rui Horta apanhei-o quase de saída, mas ainda a tempo de apresentar o espaço que criou há 15 anos. Na essência, a associação funciona como uma “incubadora” que apoia a “energia artística” das artes do palco, como o teatro e a dança. Os artistas podem ensaiar os seus trabalhos, frequentar seminários, obter formação e ajuda na sua divulgação internacional. “Somos um país periférico a uma escala europeia. Ninguém passa por Portugal, tem que se querer vir a Portugal”, adiantou Rui Horta.
A adaptação de O Espaço do Tempo à comunidade local foi “muito simples”, apesar de ter aterrado na cidade como uma espécie de “OVNI”. Nas ruas há quem não saiba bem o que faz Rui Horta, mas que reconheça a sua importância para a cidade. A provar esta ligação está uma foto tirada na Praça de Toiros de Montemor-o-Novo, onde 250 pessoas se perfilam, entre artistas residentes e o próprio Rui Horta. Um símbolo de unidade exposto ao longo do claustro. Susana Picanço não falhou um nome entre os fotografados.
De início ainda pensei entrevistar alguns artistas residentes, mas o facto é que não via nenhum. Uma residência caiu e outra não teve apoio e eis que acerto em cheio na única semana vazia da história de O Espaço do Tempo. Na semana seguinte, voltaria a encher e até Rui Horta regressaria com a sua equipa de 25 bailarinos para preparar o espectáculo Hierarquia das Nuvens. Mas naquela noite não, seria o silêncio, apenas perturbado pelo som dos meus passos nas escadas de madeira antiga.
Sozinho no convento
Reparei que passaria sozinho a noite no convento quando me vi com as chaves do quarto e da entrada principal na mão. Os meus companheiros de viagem andavam por outras paragens à procura de outras histórias. Ou seja, a noite seria apenas minha. Susana deixou-me uma garrafa de tinto Marquês de Montemor, da Quinta da Plansel, e disse-me que haveria pão fresco pela manhã na cozinha. E perguntou: “Não tens medo de ficar aqui sozinho?”. Mostrei-me bravo. “Não te preocupes, obrigado”. Ela: “Eu tinha!”. Porquê? “Não há fantasmas, não?”, questiono. Nada disso, ainda que haja quem diga que, em tempos, “foram encontradas ossadas de bebés na cave”. Desagradável, sim senhor. Mas o problema, acrescentou, eram as osgas. E as cobras. “Cobras?”, deixei escapar ligeiramente trémulo. “São cobras caseiras, mas tenho medo delas”. Fiquei a pensar um pouco. “Como caseiras?”...
Parece que um trabalho de reparação do telhado perturbou a vida calma das cobras caseiras e estas agora aparecem aqui e ali. “No outro dia caiu uma do tecto”, revelou. Que seja pela arte! De modo que lá fiquei eu, o “artista” convidado, a escrever estas linhas com alguns olhares de soslaio, de quando em vez, ora no quarto ora nas mesinhas do claustro, usando o espaço e o tempo como se fossem meus.
Tailândia, Brejão
Na manhã seguinte lá estava o pão fresco na cozinha. Comi-o com a satisfação de não me ter cruzado com nenhuma cobra performativa – o mais que vi foram umas osgas bailarinas. Voltei a almoçar (onde jantara) no Monte Alentejano, na companhia luminosa da Dona Maria do Céu e do marido José Barros, proprietários da casa, e segui viagem, porque a estrada tem mais a ver com partidas do que com chegadas.
Desci o Alentejo como uma criança sonolenta, de barriga cheia da açorda do almoço, e algo caprichosa, saltando cidades consoante o espírito do momento. Parei para beber café em Grândola. A vila continua morena, mas pareceu-me agora muito tímida e calada. Em Santiago do Cacém mal tive tempo de pisar o chão. Viajar é também perder histórias. E ficarei sempre sem saber qual a história do senhor que me pediu 50 cêntimos, em Odemira, para beber um café. “Preciso muito de beber um café”, disse-me.
Cheguei a Brejão com o dia a pôr-se. Mais tarde, desceria ainda até à Vila do Bispo e daí até ao Cabo de Sagres, perdendo-me nas estradas desertas, pejadas de pneus, casas e cães abandonados, acabando a noite a contemplar a vista mais a sul do país. Mas primeiro quis conhecer a comunidade tailandesa a viver em Brejão. Tinha ouvido dizer que eram perto de 100 e que trabalhavam sobretudo nas plantações e estufas nas imediações da aldeia.
Encontrei um pequeno grupo de quatro jovens tailandeses junto ao supermercado. Tocavam e cantavam temas sobre a sua longínqua terra. Ao vê-los tão emocionados nas suas melodias recordei-me de uma frase de Salman Rushdie, em O Chão que Ela Pisa: “As nossas vidas não são o que merecemos, são em muitos casos dolorosamente deficientes. A música transforma-as numa qualquer coisa diferente. Mostra-nos o que nós próprios poderíamos ser se fôssemos dignos desse mundo”.
Enquanto Ohm, Nat e Pree tocavam, Ban-Thai ia entrando e saindo da loja para abastecer todos de cervejas. Ohm é o único que fala inglês. Simpático e com vontade de conversar, logo me convidou a sentar, contando-me que chegou a Portugal em Março. Quer juntar “muito dinheiro” para regressar para a sua terra e abrir um negócio de fabrico de ténis. Pelas suas contas precisará de trabalhar três anos numa estufa. “Na Tailândia dava aulas de japonês”, revelou. Os outros continuavam a cantar e iam sorrindo também para mim. “Os tailandeses são tímidos por natureza”, acrescentou Ohm. “Mas gostam muito de dar, de oferecer”.
E eis que chegou Ban-Thai com nova rodada de cerveja. Estendeu-me uma, enquanto Ohm apontava para Pree. Queria dedicar-me uma música pela minha simpatia. “A mim?”. Notas simples mas bonitas. Ohm foi traduzindo a letra. Algo do género: “Conhecemo-nos para logo dizermos adeus que tenhas sempre um braço amigo/para te ajudar a deitar depois do trabalho/para te ajudar a levantar depois do descanso”.
“E gostas de Brejão?”, perguntei a Ohm. Sorriu. “Tenho mulher e um filho pequeno na Tailândia”. Do que ele gosta mesmo é do Barcelona. E do Benfica, por causa do “Pablo Aimar” e de Pearl Jam apenas porque é “bom”.
Como é simples entendermo-nos quando falamos por prazer. Somos todos de onde pisamos. De onde pomos os pés ou as rodas. “Tenho de me ir embora”, pensei, “ainda tenho muitos quilómetros pela frente”. Foi então que Ben-Thai me estendeu uma malagueta enquanto dava uma dentada noutra. Sem pestanejar. Primeiro, recusei. Depois, aceitei. “O melhor é alguém arranjar-me mais uma cerveja!”. O sul pode sempre esperar se não perdermos o norte.
GUIA PRÁTICO
Onde dormir
Convento da Salvação
7050-000 Montemor-o-Novo
Telefone: 266 899856
www.oespacotempo.pt
Fica a indicação mas com a ressalva de que não é para todos. Apenas para artistas e jornalistas a fazerem-se de convidados. O Convento da Salvação fica situado no interior do Castelo de Montemor-o-Novo e possui 13 quartos duplos, uma cozinha e um WC partilhados. A associação de Rui Horta, O Espaço do Tempo, acolhe neste espaço, por ano, perto de 600 artistas que aqui ensaiam os seus trabalhos antes de os mostrar ao mundo. São tratados como família. Com uma garrafa de vinho à noite e pão fresco pela manhã. A envolvência do claustro dificilmente poderia convidar mais à criatividade.
Pousada de Juventude da Arrifana
Urbanização Arrifamar, lote 43-44
Praia da Arrifana
(8670-111 Aljezur)
Telefone: 282 997455
arrifana@movijovem.pt
Nesta viagem continuamos a dormir em todo o género de poisos (nem conventos nos escapam já...), mas as pousadas de juventude são uma aposta permanente, até porque assim se quer a juventude: permanente. Desta vez, a opção foi a da Arrifana-Alzejur, situada a 800 metros da praia. Dispõe de cinco quartos duplos com WC, além de vários múltiplos e ainda um quarto adaptado para pessoas de mobilidade reduzida.
Onde comer
Monte Alentejano
Avenida Gago Coutinho, 8
7050-100 Montemor-o-Novo
Telefone: 266 899630
Já houve quem titulasse um artigo sobre o restaurante Monte Alentejano como “Comidinha da Céu”. Faz sentido quando se conhece a Dona Maria do Céu e o seu marido José Barros, os proprietários desta casa situada na avenida principal da cidade. Excelentes conversadores, fazem gosto em receber e em explicar os seus pratos. Tudo com a confiança de quem sabe que há clientes amigos que viajam da outra ponta do país apenas porque sonharam com os seus ovos com espargos, com a sua tomatada com toucinho, com o seu caldo de cação, com a sua açorda, ou com algumas das suas sobremesas: sericaia, pão de rala ou o premiado mel e noz. O Hotel Montemor funciona no mesmo magnífico edifício dos anos cinquenta.