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De Melgaço a Vila Nova de Foz Côa: A viagem é de quem a apanha

Por João Ferreira Oliveira (texto e fotos)

Vinho Verde, cães Castro Laboreiro, cavalos semi-selvagens, um piquenique, alquimistas de aguardente, cornos de veado e castanhas à beira da estrada. Tudo isto é a Volta a Portugal em 80 dias, tudo isto é Minho, Trás-os-Montes e Alto Douro. Tudo isto é Portugal.

Já lá vão mais de 70 dias, a Volta a Portugal está a chegar ao fim, mas ainda é cedo para balanços. A contabilidade ficará reservada para mais tarde, já no conforto do sofá e longe da estrada (se é que vamos conseguir ficar longe da estrada por muito tempo). Ainda assim, e depois dos últimos dias, é impossível resistir à tentação de olhar para trás e não lembrar com saudosismo alguns dos melhores momentos da semana. Mesmo numa viagem a três há momentos que são só nossos. Estes são os meus.

Piquenique em Castro Laboreiro

O Minho. Finalmente o Minho, o Minho verde, o vinho verde, o meu Minho, região que ligamos de imediato à natureza, ao Gerês e às suas muitas cascatas e lagoas. Mas há vários Minhos dentro da região. Entre eles, um Minho onde abunda o cimento.

O Rui Pelejão, que já não explorava estas paragens desde a infância, ficou impressionado com a paisagem (quem não fica?), mas não estava à espera de tanta construção à margem do asfalto. Casas brancas, casas amarelas, casas cor-de-rosa, chalets construídos para a neve como se vivêssemos no Pólo Norte.

Qualquer preocupação arquitectónica, histórica e estética parece estar reservada à (in)consciência de cada proprietário. Se não é assim, já foi, sobretudo na rebelde década de 1990. As palavras são minhas, estão à vontade para contrapor, é sabido que os filhos da terra têm tendência para embalar com demasiada força o berço onde nasceram.

Há, contudo, um Minho que continua intemporal (não confundir com parado no tempo). O Alto Minho. Castro Laboreiro. Foi para lá que seguimos depois de uma visita a Melgaço, a vila mais a norte de Portugal. O Museu do Cinema ou o Solar do Alvarinho valem uma visita por si só — recorde-se que a casta Alvarinho é originária desta região, apesar de serem os espanhóis os maiores produtores de Vinho Verde —, mas era em pleno Parque Natural da Peneda Gerês que queríamos acabar o dia, por entre cães Castro Laboreiro e cavalos de raça garrano.

E foi assim que aconteceu. Literalmente. Um salpicão, um queijo e um cacete de pão caseiro depois, lá estávamos nós, a petiscar por entre os pingos da chuva e guardados à distância por dois cães e uma série de cavalos semi-selvagens que ainda há bem poucos anos estavam ameaçados de extinção. Só faltou o lobo para a festa fosse completa. Não sugerimos às pessoas que façam isto “em casa” — é até possível que alguns especialistas digam, e com razão, que colocámos a nossa vida e o habitat dos animais em risco — mas é também de momentos como este que se vai estabelecendo a nossa relação. O vinho era verde, naturalmente, como o Minho.

Viagem nocturna pela serra

Não terminou por aqui a nossa breve, mas intensa, relação com estas duas raças. Antes da saída para Trás-os-Montes houve ainda tempo para visitar um canil, situado logo à entrada da vila, propriedade de Sara Esteves (um cão Castro Laboreiro, pequeno, custa em média cerca de 400 a 450 euros) e uma série de encontros imediatos com manadas de bois.

Se há locais em que os sinais que anunciam a presença de gado parecem apenas isso mesmo, sinais, pois dificilmente alguém acredita poder cruzar-se na estrada com um veado ou um cavalo selvagem, aqui não é o caso. A noite já tinha caído, havia um jogo da selecção portuguesa para assistir pela televisão e tínhamos decidido passar a noite na Pousada de Juventude de Ponte de Lima.

Restavam-nos, por isso, duas opções: ir por Melgaço e Valença, como aconselhava a prudência, ou seguir pela serras da Peneda e do Soajo, bem no coração do parque natural. Está fácil de ver que escolhemos a segunda. Conduzir à noite pode ser um perigo, é certo, sobretudo num território como este, aqui e ali debaixo de chuva e nevoeiro cerrado, mas há uma dose de magia e desafio com a qual o dia dificilmente poderá combater. Sobretudo quando uma manada de cavalos garranos resolve barrar-nos a estrada, indiferentes aos relatos da sua reconhecida pacatez. Como que Portugal, a Natureza e viagem a cumprirem o seu destino.

Portunhol em Rio de Onor

Trás-os-Montes, finalmente. Não temos nada contra as cidades — Chaves e Bragança, por exemplo, são duas cidades históricas bem preservadas que vale a pena visitar com calma —, nem vamos às aldeias em busca de momentos caricatos, quais exploradores cosmopolitas munidos de superioridade saloia, mas é de um Portugal distante que continuam a sair alguns dos nossos melhores momentos.

Até porque, em última instância, somos todos filhos, sobrinhos, ou netos da província. Neste caso, passou-se no Parque Natural de Montesinho, em Rio de Onor, tantas vezes descrita como a última aldeia comunitária de Portugal. E por comunidade leia-se Portugal e Espanha, uma vez que a aldeia é dividida ao meio pela fronteira. Será que ainda subsiste este espírito? Era sobre isto que nos questionávamos quando vimos um casal a fazer aguardente, alambique montado na rua, sorriso curioso à nossa passagem.

“Sondes da Bolta a Portugal em bicicleta”, pergunta Luís, espanhol, “lá da outra banda”. Perpétua, a mulher, explica-se. “Temos um sobrinho que anda muito bem. Já foi à selecção. Mora no Porto. A maior parte das pessoas que moravam aqui saíram. Nós vivemos quase sempre aqui.” Falam à vez, rápidos no gatilho, sem se atropelarem, contudo. “Eu trabalhava dois dias e vinha descansar três para aqui.

Desde que estou reformado trabalho todos os dias. Tendes que provar a nossa aguardente.” O melhor é deixar de usar estas expressões em portunhol, por respeito ao rionorês, dialecto local que ainda não desapareceu por completo. Provámos, pois, só um bocadinho, mas provámos, que o carro não anda sozinho e por esta altura o volume alcoólico ronda os 60 graus. Copo puxa conversa, é uma história antiga, já se sabe, sobretudo connosco, e por ali ficámos durante uns bons minutos a ouvir histórias que raramente chegam aos telejornais. Até porque os telejornais nem sempre passam aqui.

“Ainda há algum tempo estiveram aqui uns jornalistas da televisão a fazer uma reportagem sobre a TDT. Somos uma zona sombra. Resta saber se vamos conseguir ver. É o que temos. No tempo da ditadura roubava-se menos, só era pena que não houvesse liberdade. Eu não defendo a ditadura, só tenho pena que os ditadores bons não sejam democratas, porque com esta democracia não vamos lá.

” Ninguém se queixou da vida, apenas do país. A conversa foi interrompida por Sofia, dona Sofia, que, para nosso espanto, apareceu vinda do monte com um par de cornos de veado na mão. “O que aqui não falta é veados. Dão cabo de tudo. Não sabiam que os cornos dos veados caem e se renovam todos os anos?”

O Douro e as castanhas

Depois do Parque Nacional da Peneda-Gerês e do Parque Natural de Montesinho, o Parque Natural do Douro Internacional na mesma semana. Podemos ter muitas razões de queixa deste país, mas esta é, de facto, uma terra única. A poucos dia do final da aventura, esta paisagem não poderia ter vindo em melhor altura.

Pelo Douro, sempre ele, e sobretudo pelo horizonte. Um horizonte sem socalcos, mas com uma força serena capaz de emprestar uma dose extra de energia a estes três mosqueteiros do asfalto que ainda não estão fartos de estrada nem do Citroën C4 Cactus, mas a quem já pesa o volante. Recupero aqui parte de um post que coloquei no facebook depois de um longo dia de estrada, que os desabafos são sempre mais verdadeiros. “Mais de setenta dias e cerca de treze mil quilómetros depois do tiro de partida, nenhuma outra região (exceptuando, porventura, o Alentejo) poderia emprestar um horizonte tão retemperador.

Se há zona do país em que se sente a distância do ponto A para o ponto B é Trás-os-Montes. No meio apenas paisagem. Castanheiros. Às vezes tudo o que um homem quer é uma estrada sem fim à vista e poder apanhar umas castanhas em paz, como fazia há mais de vinte anos com o seu avô.” A castanha é de quem a apanha, era uma das expressões que mais utilizava. As castanhas e a viagem.

GUIA PRÁTICO

Onde dormir

Pousadas de Juventude de Melgaço
Ponte de Lima, Bragança e Foz Côa

As Pousadas da Juventude continuam a ser a nossa principal casa ao longo destes 80 dias, mas nunca tínhamos ficado tantas noites seguidas a dormir em camaratas. Ainda por cima em localidades diferentes. Não é uma queixa, bem pelo contrário, até porque nenhuma delas nos deixou ficar mal, sobretudo em termos de enquadramento e horizonte. Se a Pousada de Ponte de Lima fica ligeiramente afastada do centro histórico da bonita vila minhota, se bem que somente a dois ou três minutos de carro, todas as outras têm uma localização privilegiada.

O edifício de Bragança fica numa área tranquila, junto aos serviços municipais e à zona desportiva. Já as Pousadas de Melgaço e Vila Nova de Foz Côa fazem do enquadramento e da vista a sua força maior. A primeira fica a dois passos do rio Minho, a segunda, de peito aberto para o Vale do Côa. www.pousadasjuventude.pt

Onde comer

Carvalho
Casa aberta há mais de duas décadas e já uma espécie de instituição da cidade transmontana. Comida e ambiente típicos, à prova de modas.

Alameda de Tabolado, Largo das Caldas 4, Chaves
Tel.: 276 321 727

Miradouro do Castelo
Uma posta de carne da região, cabrito assado no forno a lenha, bacalhau com broa, enchidos e queijos, tudo com vista para os montes do Gerês. Também há um café ideal para aqueles que quiserem ficar pelos petiscos.

Lugar da Vila, Castro Laboreiro
Tel.: 251 465 469

Taberna O Batoque
Não, em Trás-os-Montes não se come só carne. Os cogumelos são um dos maiores tesouros da terra e especialidade da casa. Até francesinhas com cogumelos fazem.

Rua dos Batoques, 25
Bragança
Tel.: 273 325 284

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