Fugas - restaurantes e bares

  • Nelson Garrido
  • Nelson Garrido
  • Nelson Garrido
  • Nelson Garrido

Comer Amarante é comer lérias, foguetes ou brisas

Por Luísa Pinto

Cabem nos dedos de uma mão e deixam qualquer um de barriga cheia. Amarante recebe este fim-de-semana a X Feira do Doce Conventual tendo as suas lérias e foguetes, papos de anjo, brisas e São Gonçalos como mestres de cerimónia. Pretexto para conhecer quem se dedica a perpetuar os segredos que fugiram do convento.

A história é conhecida — e parecida com todas aquelas que falam de freiras a ganhar a vida e a vender para as casas fidalgas doces ricos (com muitos ovos e ainda mais açúcar) cujas receitas teimavam em manter secretas. No Convento de Santa Clara de Amarante, fundado no século XIII, a história não podia ser diferente. As clarissas foram adoçando a boca à fidalguia até que as ordens religiosas foram extintas, acabou-se o segredo e as receitas chegaram à população. No caso de Amarante, a receita até chegou 20 anos antes de a última freira se ir embora, em 1845, e até se sabe o nome da senhora que teve a sorte de acompanhar a vida da última freira e a quem se atribuiu a transmissão das receitas: Maria do Sacramento Oliveira.

Contam-se pelos dedos, até a mão ficar cheia, a variedade de doces que se têm vindo a perpetuar, de geração em geração, entre as famílias doceiras que continuam a levar longe o nome dos doces conventuais de Amarante. E se há alguma novidade é que, entre as preciosidades que saíram das clarissas que viviam em clausura junto ao Tâmega, para além dos ovos e do açúcar, também se encontra a amêndoa nos ingredientes.

Os mais tradicionais são os papos de anjo, feitos com uma massa de ovo e açúcar que é envolta em papel de hóstia e cortada num formato de rissol. As brisas do Tâmega fazem-se com a mesma massa, mas são vertidas numa baunilha com o formato de um pequeno barquinho e ainda levam por cima uma calda de açúcar. A amêndoa junta-se aos ovos e ao açúcar para fazer os foguetes que vão ao forno enrolados numa folha de hóstia e também nos doces de São Gonçalo, que se apresentam com uma textura tipo pudim conseguida na cozedura no forno em banho maria. Por fim, o quinto e mais original de todos os doces, as lérias, que não levam ovos mas apenas amêndoa e açúcar (e um pouco de farinha para as unir) e que vão ao forno antes de serem cobertas com uma calda de açúcar.

As receitas passaram de geração em geração, de família em família, e fizeram-se em Amarante casas tradicionais que correram mundo, sobretudo à boleia dos emigrantes. Só quem nunca ouviu falar de doces conventuais de Amarante é que pode dizer que nunca ouviu falar de Alcino dos Reis e da sua Casa das Lérias. Ou da da Pastelaria LaiLai, outra casa histórica na reputação da cidade e da sua doçaria conventual. Estas duas estão fechadas. Outras reabriram com novas gerências. A que vai resistindo no tempo é a Doçaria Mário, que comemora dentro de duas semanas os seus 60 anos de actividade ininterrupta.

Tal actividade faz de Mário Silva, 81 anos, doceiro desde os 13, o decano. Ele é, porventura, o mais antigo a continuar na arte, mesmo depois de ter “passado às gémeas” a freima da cozinha da sua Doçaria. Hoje diz que anda por lá mais a “fazer sala”, mas confessa que ainda se permite dar o gosto à mão — até porque é tudo feito manualmente, e com tempo. E dar gosto também à boca, claro. “Que eu não provo só. Eu também como”, acrescenta.

Mário é um homem de memórias límpidas. Ainda se lembra, por exemplo, da noite em que conseguiu aprender a fazer ovos em fio. “Eram cinco da manhã. De tanto experimentar, houve uma altura em que acertei. Nunca mais falhei”, relata. Aprendeu com os melhores, diz: “A dona Júlia, a mulher de Alcino dos Reis.”

--%>