Fugas - FugasEmPortugal

  • Praia da Peneda, Góis
    Praia da Peneda, Góis Bruno Simões Castanheira
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    Praia da Peneda, Góis Bruno Simões Castanheira
  • Bufareira no Penedo Furado, Vila de Rei
    Bufareira no Penedo Furado, Vila de Rei Bruno Simões Castanheira
  • Praia fluvial do Penedo Furado, Vila de Rei
    Praia fluvial do Penedo Furado, Vila de Rei Bruno Simões Castanheira
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    Praia fluvial do Penedo Furado, Vila de Rei Bruno Simões Castanheira
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    Igreja em Praia de Mira Bruno Simões Castanheira
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    Praia de Mira Bruno Simões Castanheira
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    Moliceiros da ria de Aveiro Bruno Simões Castanheira
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    Aveiro, homenagem aos moliceiros Bruno Simões Castanheira
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    Moliceiros da ria de Aveiro Bruno Simões Castanheira
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    Kitesurf na ria de Aveiro Bruno Simões Castanheira
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    Praia da Peneda, Góis Bruno Simões Castanheira
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    Praia da Peneda, Góis Bruno Simões Castanheira
  • Ribeira de Codes a caminho do Zêzere
    Ribeira de Codes a caminho do Zêzere Bruno Simões Castanheira

Mergulhámos nas origens para voarmos pelo Verão

Por Carla B. Ribeiro

Seja num recolhido recanto no centro do país ou pela atlântica orla costeira, na Beira Litoral as férias de Verão são sempre um regresso às origens. Caminho fora, vamos ao sabor da água e do vento, entre lendas de moiras encantadas e passeios de contemplação, sem esquecer actividades mais radicais. E um sorriso de criança. É o primeiro passeio da série Fugas em Portugal.

O sol já queima e pelas serenas e correntes águas da praia fluvial há gente a banhos logo pela manhã: pais com miúdos pequenos, rapazes pré-adolescentes de vozes a engrossar em brincadeiras aquáticas, raparigas que vão pondo um pé na água gelada mas que não se atrevem a mostrar o biquíni e muito menos a mergulhar.

Estamos mesmo no centro do país. A menos de dez quilómetros, um grande marco, em forma piramidal, assinala o centro geodésico de onde se avista desde a serra da Lousã até às planícies alentejanas (há dias, como o de hoje, de céu limpinho, em que se distingue até a serra da Estrela). Talvez seja esta centralidade que nos impele a sentir um regresso às mais primitivas origens. Isso e os recantos que o pinhal (a recompor-se a olhos vistos dos incêndios que lavraram há uma década e que destruíram grande parte da mancha verde do concelho de Vila de Rei) continua a proteger.

Por cada um deles descobre-se uma ruralidade que vai muito além das tradições agrícolas. É uma ruralidade que também se alimenta de mitos e lendas. É nesta senda que não resistimos a fazer batota e, em vez de seguirmos já rumo ao mar — embrenhando-nos, como nos propuséramos, pela extinta região da Beira Litoral, designação que, embora tenha desaparecido com a Constituição de 1976, continua a fazer parte do vocabulário e imaginário lusos —, recuamos à margem esquerda do rio Zêzere para descobrir o que se esconde para lá da praia fluvial do Penedo Furado.

Não se trata de uma estreia pelo local; mas da última (e única) vez que aí tínhamos estado, entráramos pelo rio e a expedição, que fazia a descida do Zêzere, nunca chegou à praia, ficando-se pelas piscinas naturais. A experiência, no entanto, tinha sido suficientemente emocionante para prometer um regresso mais calmo. E, embora hoje, 15 anos depois, o Penedo Furado ande nas bocas do mundo (sobretudo depois de ter feito parte dos 21 candidatos às 7 Maravilhas - Praias de Portugal), ainda permanece suficientemente longe dos roteiros do turismo para justificar uma redescoberta. Desta feita, por terra — embora não seja de desprezar uma tentativa de o conhecer por água, usando para isso uma canoa —, numa caminhada que termina junto às infra-estruturas de apoio à praia fluvial.

É então que a água se apresenta como irresistível. E confesse-se que, após o choque do primeiro contacto, continuamos em mergulhos e mais mergulhos, deixando-nos, num suave boiar, absorver por tudo o que nos rodeia. Inclusive pelas histórias que o local inspira.


Entre mitos e lendas

O concelho é, dizem-nos, pródigo em lendas. E a origem de uma das mais antigas está, literalmente, cravada na pedra. A Bicha Pintada é “apenas” um fóssil com mais de 480 milhões de anos, como se pode ler numa placa explicativa. Mas a sua forma serpenteante é associada, por alguns, ao culto ofiolátrico celta. E não só. Diz-se que foi criada por uma criatura onírica quando esta foi aprisionada na forma de uma serpente. História que nos vai invadindo o imaginário à medida que avançamos pela margem direita da ribeira de Codes. Uma narrativa de uma bela princesa moira que, entre o Penedo Furado e a Bicha Pintada, guarda um bezerro dourado numa gruta bem escondida e que “só o dará a amor sem medo”.

A lenda da Bufareira não é recordada por uma avó que, junto ao rasgo serpenteante na rocha, tenta explicar a razão daquela forma a um rapaz dos seus oito ou nove anos; lá em baixo, há quem, sem provavelmente sonhar com princesas e bezerros dourados, fuja de olhares indiscretos para dar umas braçadas por uma das bufareiras, cuja origem também dá azo a várias teorias. Uma delas pode ler-se no livro Vila de Rei e o Seu Concelho, com informações compiladas por José Maria Félix, em 1968. Nele fala-se da possibilidade de estas piscinas naturais serem resultado de pegadas de gigantes pré-históricos. “Não nos custa a acreditar que essas covas sejam a consequência de pegadas e ovas de sáurios gigantes existentes na época mesozóica.”

É com os répteis pré-históricos em mente que prosseguimos por circuito circular e íngreme que tão depressa nos situa entre os cheiros quentes e fortes que emanam dos pinheiros e dos eucaliptos, como a seguir nos guia por frescos túneis de delicada vegetação. Pelo trajecto, esculpido na pedra e atravessado por pequenas e estreitas pontes que nos vão levando de margem a margem, várias conheiras (escombreiras formadas por amontoados de pedras) indicam uma milenar exploração de ouro a céu aberto e algumas exibem hoje imagens religiosas, doadas por populares, que transformam o local numa espécie de santuário. É junto destes anjos e santos que se consegue ver mais longe, abraçando com o olhar um bom pedaço do irregular Zêzere, assim como as demais formações quartzíticas que moldam as escarpas mais próximas. Sendo sítio que não recebe enchentes constantes, não é difícil deixarmo-nos encantar por uma sensação de comunhão com a natureza. Sobretudo se abandonamos o trilho e avançamos pelo mato adentro — a única forma de, por terra, chegar a uma das maiores cascatas.

Não se pense, porém, que estamos sempre sozinhos: de vez em quando algum caminheiro cruza-se connosco ou somos nós que damos de caras com um trio de jovens amigos em saltos acrobáticos para uma das mais profundas bufareiras — com direito a coreografia ensaiada e a máquina fotográfica a registar os melhores mergulhos.


Em modo Tom Sawyer

São os saltos que primeiro nos chamam a atenção. Do tronco inclinado e agarrados à corda amarrada a uma árvore que se debruça sobre o rio Ceira, a alguns metros da represa que permite à praia fluvial de Góis manter uma ilha em areia branquinha ao longo de todo o Verão, uns miúdos protagonizam uma cena a lembrar uma qualquer traquinice vivida por Tom Sawyer em parceria com o fiel amigo Huck. Só depois os nossos olhos se deixam arrastar pela copa da árvore, onde parecem crescer, em vez de laranjas ou peras, rapazes. Isso mesmo: crianças que tentam voar qual Tarzan ou que se deixam simplesmente cair dos ramos mais altos para a água corrente. Não vale a pena sequer disfarçar: a descrição acima revela mesmo uma ponta de inveja de não sermos uma daquelas crianças. Embora por esta zona da serra a idade não seja impedimento para nada. Como nos demonstra, aliás, um grupo de homens que, acabadinhos de chegar de fazer downhill em BTT, se atiram à água (ou se deixam atirar…) como se não houvesse amanhã. Um há que, numa atrevida manobra, até leva a bicicleta consigo (e perde o assento, para gáudio dos companheiros de risota).

Góis é uma das localidades escolhidas pelos praticantes de downhill, mas não só. Pelas margens do rio Ceira, enquanto descansamos entre as sombras, há quem deslize em slide, navegue em canoa, pratique rapel… Paulo Silva, fundador da Transserrano, uma empresa de animação turística com sede nesta vila e que hoje recebe um grupo de aventureiros, trocou há 15 anos a agitação de Lisboa pelas aventuras montanhesas. Mas o seu campo de acção vai muito para lá do centro de Góis. Invade a serra da Lousã com caminhadas, algumas sazonais, como a que acontece em Setembro, por altura da estação da brama, quando ocorre o acasalamento dos veados (mesmo ao entardecer ou antes do nascer do sol); explora as ribeiras da Pena e das Quelhas com actividades de canyoning, desporto que consiste na exploração de um rio com obstáculos verticais; ou, mais recentemente, aposta nas caminhadas aquáticas pelo leito do Ceira.

Não ficamos por aqui: pelas montanhas que nos rodeiam, pode-se fazer um pouco de tudo. Desde passeios em bicicleta, de jipe e moto quatro até subir aos Penedos de Góis e ao Cerro da Candosa, mas também voar em parapente a partir do Cabeço da Ortiga.

Claro que não é preciso ser radical para colocar a serra da Lousã entre os destinos de férias. À volta, há dez das 26 aldeias de xisto para visitar, entre as quais Aigra Nova, onde se pode descobrir o Eco-Museu Tradições do Xisto e, neste, uma série de actividades promovidas pela Lousitânea – Liga de Amigos da Serra da Lousã, que “procura valorizar as tradições e a cultura serrana, a par com a conservação da natureza”.

Em Aigra Nova, encontra-se a Maternidade das Árvores inserida no Eco-Museu. É que se há bem precioso pela serra é todo o seu verde que a cada Verão se sente ameaçado. Por aqui, trata-se da reprodução de espécies autóctones e, tal como acontece com alguns animais um pouco por todo o país (e aqui também com o burro), há a possibilidade de apadrinhar uma árvore. Um padrinho ou uma madrinha de uma árvore terá o privilégio de “seguir todo o seu crescimento”, assim como qualquer momento mais significativo da vida do exemplar apadrinhado. “Uma iniciativa que tem tido muita adesão”, informa Paulo com satisfação.

Mas a Lousitânea tem mais propostas para descobrir os costumes locais e até para aprender alguns ofícios. Como o de apicultor, graças à ajuda de Manuel Claro, habitante da Aigra Nova, mas que se desloca a Aigra Velha para ensinar a extrair o mel das colmeias para depois, no alambique da família Claro, ensinar o fabrico de aguardente de mel. Há ainda programas que propõem ao visitante participar no processo tradicional de fabrico da broa de milho e centeio ou nas tardes de descamisar o milho — e, neste caso, a organização “conta com a ajuda de figurantes que criam o ambiente”, relata Paulo. “É uma forma de não deixar morrer as tradições.”


A arte das pescas

À beira-mar também não se desprezam tradições. E, na praia de Mira, não fosse o mar estar tão mau, poderíamos ver o trabalho dos pescadores que procuram preservar a pesca por cerco e que, desde o ano passado, beneficiam da ajuda da Associação Portuguesa de Xávega (APX). Mas o mar mostra-se demasiado rebelde para arriscar uma saída. “Mesmo num domingo, se não fosse o estado do mar que se pode ver, estariam as cinco companhas (agremiações de pescadores) da praia de Mira no mar”, garante-nos José Vieira, presidente da APX.

A verdade é que por aqui não há domingos ou dias santos; há, sim, dias em que o mar se mostra disponível e o peixe se oferece em sacrifício, mas também outros em que parece que até o peixe foge… “Nesses dias nem vale a pena insistir.”

Por isso, noutro dia qualquer, a miragem seria a mesma de há cem anos: barcos em forma de quarto crescente e com a proa bem alta de bico pontiagudo a entrarem pelo mar adentro e a enfrentarem sem temor a violência do rebentamento das ondas atlânticas para colocarem as redes (xávegas) com que praticavam as artes. A mesma ou quase. Porque as juntas de bois que eram levadas para o areal para puxarem as redes carregadas de peixe miúdo, sobretudo carapau, foram substituídas por tractores. E em cada barco já não seguem dezenas de homens, mas apenas uma mão cheia deles.

A vida pode ser dura, como se constata pelas mãos de João Facão, de 77 anos. Mas a agilidade não foi perdida. Nem a vontade ou a memória, forças motrizes que levaram este pescador e artífice a juntar-se a Aperino Gil, 75 anos, e a João de Jesus, de 64, na missão de reproduzir em maquete a Palheiros de Mira dos anos 40. “Foi tudo feito de memória”, diz, de peito inchado de orgulho, Ti’João, como nos é apresentado. “Foram dias e noites aqui; parecíamos miúdos”, recorda a sorrir. “E não recebemos um tostão”, sublinha. A obra, que pode ser conhecida no Edifício da Lota, estende-se por uma sala e mostra os antigos palheiros em madeira assentes em estacas, tal e qual descrito por Raul Brandão em Os Pescadores (1923): “Mira, terra de pescadores, palheiros, de madeira estacada na ondulação da duna, que sobe como uma vaga até ao alto. De um lado uma poça, do outro, lá no fundo, o mar levantando a areia com o bater compassado e eterno.”

Poucos daqueles palheiros ainda se vêem. Apenas a restaurada capela ou o Museu Etnográfico Praia Mira. Os outros foram dando lugar aos edifícios de apartamentos, muitos a alugar nas férias. “Isto é que era bonito”, defende João Facão, enquanto os seus olhos se passeiam pela rua principal desta maquete, pavimentada ainda a areia. “Bonito… casas sem condições nenhumas!”, contrapõe José Vieira, ao mesmo tempo que defende um progresso que, certifica, melhorou muito a vida dos pescadores.

Com ou sem desenvolvimento, há uma coisa que se mantém como há um século nesta “pesca cega”: o peixe que, muitas vezes, “ainda chega à lota aos saltos”. “Aqui o peixe não é fresco; é fresquíssimo”, sublinha José. “Continua a ser um espectáculo quando a rede chega ao areal e todos se juntam em torno da escolha do peixe.” Uma selecção que, nos dias que correm, depende em muito do tamanho: todo o pescado com menos de 12cm (“quase é preciso andar de fita métrica”) é devolvido ao mar: “Comida para as gaivotas”, reclama Vieira. “Tudo para proteger as espécies. Como se o carapau, que pescamos da mesma maneira há séculos, fosse agora desaparecer…”


Viagem à Gândara

Enquanto pela praia se pode observar in loco como a arte xávega é praticada no século XXI, no Museu do Território da Gândara, no centro de Mira, é possível, desde há um ano, uma verdadeira viagem ao passado. Aqui, fica-se a conhecer todas as memórias associadas ao mar. Através de documentos e objectos, mas também com a ajuda de um documentário cedido pela RTP – Onde os Bois Lavram o Mar, realizado por Adriano Nazareth em 1959. Ou numa sala interactiva, na qual os dedos vão, por um gigante ecrã táctil, invocando as artes da pesca, mas também os sons da faina ou os trilhos por onde nos podemos passear. Sobretudo se se tiver uma bicicleta. É que em Mira todos têm “uma bicicleta; é aproveitar que é tudo a direitinho”, confidencia Brigitte Capeloa, enquanto nos guia pelo novel museu que se propõe a contar a história da Gândara — até à Pré-História.

“Os miúdos às vezes acham que [aponta para o primeiro mostruário que nos surge assim que entramos e que sustenta a existência de extintos géneros de hominídeos pela Gândara] estas coisas só existiram em África.” Mas o espaço não explora apenas o território. Também nos fala sobre o engenho de um povo que transformou um deserto numa terra habitável. “Isto”, explica-nos Brigitte, “era só areias soltas e lodo”. “E ser gandarês era por vezes sinónimo de ser pobre e rude.”

A areia ainda cá está. Mas o resto mudou. O solo foi sendo alimentado ao ponto de se proceder à florestação de uma grande área pela qual correm as águas que vão dando energia aos moinhos próximos da lagoa de Mira. Ainda hoje os moinhos se mantêm a laborar e os seus proprietários estão sempre disponíveis para receber, com uma boa dose de conversa, toda e qualquer visita.

A Rota dos Moinhos é apenas um dos cinco percursos disponíveis (há ainda a Rota dos Museus, a do Ambiente, a da Lagoa e a Rota Cultural e Geológica). Mas a verdade é que se pode perfeitamente fazer batota e interceptar umas com outras. Algo que não pode faltar é uma passagem pelo espaço da Associação dos Amigos dos Moinhos e Ambiente da Região da Gândara, no Sítio do Cartaxo, onde se pode desde relaxar numa esplanada sobre a lagoa até alugar bicicletas ou barcas. E, por falar em barcas, ao longo do Verão estão programados ocasos bem musicados com o programa Sons do Cartaxo que promete levar, numa barca, uma escolha musical bem ecléctica para o meio da tranquila lagoa.


“Somos todos da ria”

Num (pequeno) salto, passamos da serenidade da lagoa de Mira para a impetuosidade da ria de Aveiro, animada pela forte nortada que se faz sentir. O vento não amaina de forma alguma e, talvez desagradado com o nosso atrevimento em desafiá-lo, riposta sem piedade e chicoteia-nos sem dar tréguas.

“Normalmente estes passeios [de moliceiro à vela] são mais calmos”, ressalva Nelson Marnoto, 32 anos, de sorriso jovial e mãos ágeis com as cordas que vai puxando, enrolando, soltando. A traquinice espelhada na face, porém, trai-o e não demora muito até admitir que “assim é muito melhor”. E mais rápido: o trajecto, que habitualmente leva cerca de três quartos de hora, faz-se em menos de 30 minutos.

Por isso, neste dia em que o programa da regata incluía apenas um passeio de exibição, o recurso ao motor torna-se essencial em alguns pontos-chave: tanto na saída do Cais da Mota, como para conseguir desviar a embarcação de um ponto em que a areia se deixava adivinhar pelo sombreado da água.

O leito de água, que tão depressa se assemelha a um grande rio como se deixa drenar, exibindo várias ilhotas, discretas línguas de terra e uma vasta área de lodo, é uma espécie de ponto de encontro. “Somos todos muito bairristas”, admite a ilhavense Susana Esteves, enquanto nos guia entre estibordo e bombordo de forma a equilibrar o peso no moliceiro onde seguimos nesta epopeica viagem. “Mas quando chegamos à ria, tudo muda: sejamos aveirenses, ilhavenses, estarrejenses [no total há 11 municípios ligados à ria] (...). Aqui, somos todos da ria.”

“Na brincadeira costumamos até dizer que nascemos na proa de um moliceiro”, acrescenta Amândio, durante uma breve pausa nas manobras de atar e desatar a vela, enquanto Domingos Marnoto, de 61 anos e o mais velho entre a equipa, dirige sabiamente o leme ao longo da ria de Aveiro. “Mas há quem tenha nascido mesmo no meio da ria”, ressalva.

Nascer na ria há uns anos não era difícil, refere o mesmo tripulante, uma vez que se passava muito tempo dentro da embarcação. “Trabalhava-se muito, sobretudo as mulheres: era de sol a sol. E havia dias que nem a casa iam. As refeições, por exemplo, eram feitas mesmo aqui”, diz-nos, enquanto aponta para o casco do moliceiro junto à portinhola que dá acesso ao castelo da proa. “Colocava-se areia, para não deixar passar o calor para a madeira, e faziam-se as brasas que grelhavam o peixe ou cozinhavam a famosa caldeirada.”

A bordo deste moliceiro, — e, confesse-se, apesar do nervoso miudinho —, nem por um segundo somos invadidos pela ideia de que a embarcação se possa virar e atirar-nos borda fora. Não que nunca tenha acontecido, mas não é caso para tanto. Sobretudo dada a experiência que se pode observar em cada traço no rosto do Marnoto pai. Inclusive quando, ainda antes da partida, a vela se solta e se atira para cara de um dos companheiros que se levantara para ajudar na árdua missão de prender a dita. A verdade é que nenhum dos tripulantes revela qualquer rasgo de nervosismo. Porém, a força do vento, aliada ao poder da corrente, impõe respeito. Por isso, os penduras deste moliceiro (também) de corrida não contestam qualquer ordem, sugestão ou recomendação.

Enquanto isso, pelos canais de Aveiro, protegidos dos ventos mais fortes, os passeios, mesmo com alguns abanões, prosseguem ao ritmo habitual. Isto é, tranquilos, numa aura de contemplação. Quanto a nós, dada a velocidade a que seguimos, pouco ou nada conseguimos reter na memória visual. Mas, em compensação, chegamos à meta com a sensação de ter colados à pele o sal da ria e o toque de pedra do vento.

Agora só “falta o mais chato”, avisa-nos Nelson. O regresso a motor, contra o sentido da corrente e contrariando o vento de Norte, é sinónimo de verdadeiras chuvadas salgadas se se permanecer sentado na proa. Bom... há uma solução: sentarmo-nos encostadinhos ao castelo da proa, deixando a água passar sobre as nossas cabeças. “É nestas alturas que se pensa como seria bom termos aquele ventinho certo das Caraíbas”, brinca Susana.


Ao sabor do vento

A ideia de que nas Caraíbas é que se está bem poderá estar certa quando se sonha com horas deitados ao sol ou com uns mergulhos numa água que nunca arrefece. Mas o certo é que quem vive neste paraíso inveja as emoções proporcionadas pela nortada. “Há uns dias esteve aqui um casal de holandeses que está a viver nas Caraíbas e que se fartou de elogiar as excelentes condições que temos para o kitesurf”, relata, cheio de orgulho, Paulo Azevedo, instrutor no Ria de Aveiro Kite Club.

Uma mão-cheia de gente dentro de água parece concordar consigo e, aproveitando a presença de câmaras fotográficas pela margem, nomeadamente a da Fugas, vai executando elaboradas coreografias. “São uns exibicionistas”, brinca Paulo, enquanto um dos praticantes se eleva pelo ar, deixando-se levar pelo kite insuflado (tanto que até houve um que fugiu...).

Ao longo da ria, a força do papagaio em forma de vela já é de tal forma que estão a ser alinhavados os últimos preparativos para receber novamente o Festival de Verão na Ria, que inclui a 4.ª edição Concurso de Kiteloop, dias 26, 27 e 28 de Julho. “Temos condições excelentes para isso; vento nunca nos falta. E se tudo correr bem teremos novamente uma pista de gelo para contemplar os snowboarders.”

Hoje, a maré está cheia e apenas os kitesurfers usufruem da ventania. Mas a presença de água não é imperativa para que se tire partido do sopro de Éolo. “Há cada vez mais gente a aderir ao streetkite (praticado em skate) ou ao kitebuggy (feito nos pequenos carros quando a maré está baixa e aproveitando a zona de lodo).” E, embora, do lado de fora pareça difícil, Paulo assegura que é uma modalidade que pode ser abraçada por toda a gente. Por isso, o clube (assim como outras escolas presentes ao longo da ria) é muito procurado também por curiosos que apenas ambicionam experimentar a sensação de se deixar levar pelo vento. Até porque “nada impede a prática: pode-se fazer em qualquer idade; tenha-se oito ou 80” anos.

Do outro lado da ria, avista-se a Costa Nova que Eça de Queiroz chegou a considerar, como se pode ler num escrito à entrada do Palheiro de José Estêvão (o único que mantém a traça original), “um dos mais deliciosos pontos do globo”. É neste mesmo Eça que nos apoiamos para, por fim, compreender que toda a Beira Litoral dialoga entre si: desde o romantismo das lendas que habitam os mais recônditos cantos do pinhal até ao realismo da terra onde os bois já lavraram o mar (expressão de Raul Brandão). E lembramo-nos novamente dos miúdos em Góis. Mas, agora, já sem ponta de inveja. Para a próxima está decidido: saltamos com eles.


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Guia prático


PENEDO FURADO

Onde comer

Praia Fluvial
GPS: 39.626261; -8.167281
A praia tem bar de apoio com menus criados com cachorros e hambúrgueres, mas é de ponderar levar farnel e dar uso aos grelhadores que servem um bem conservado parque de merendas.

O Eléctrico
Rua da Chã. Vila de Rei - Relva
GPS: 40.85536; -8.397931
Tel.: 274891326; 969858138
Inserido na Quinta do Museu das Aldeias, um restaurante típico e familiar. Todos os dias, das 9h às 24h. Ao almoço, há bufett. Sábado é dia de cozido à portuguesa; domingo, de leitão e javali

O Cobra
Rua S. João de Deus, 17. Vila de Rei
GPS: 39.676536; -8.144317
Tel.: 274898444; 962652695; 967343262
Há duas salas à escolha: uma de ambiente rústico; outra moderna, com vista panorâmica. Entre as especialidades sopa de peixe, cabrito à Cobra, bacalhau à Cobra e achigã à Cobra.

Onde dormir

Casa da Ribeira
Rua das Lajes, nº 2. Água Formosa - Vila de Rei
GPS: 40.001146; -8.779439
Tel.: 919275993
www.aguaformosa.com
Três casinhas completamente independentes, em ambiente rural, para uma ocupação até quatro pessoas. 

Estalagem Lago Azul
Ferreira do Zêzere
GPS: 39.673956; -8.231667
Tel.: 249361445
http://estalagemlagoazul.com
Na outra margem do rio, uma simpática estalagem à beira da albufeira da barragem de Castelo de Bode, com alguns quartos - cómodos e funcionais - a oferecerem uma fantástica vista.

Casa da Inveja
Dornes - Ferreira do Zêzere
GPS: 39.770658; -8.269769
www.casadainveja.com
Casa rústica do início do século XIX, com cinco quartos, sala de estar com lareira e zona exterior com jardim e alpendre. O ambiente é descontraído e familiar.

O que fazer

Alfa Aventura
Rua da Lagoa, 22. Rossio ao Sul do Tejo. Abrantes
GPS: 39.446873,-8.193206
Tel.: 241331736
Empresa de desportos aventura com informação disponível nas praias fluviais do Penedo Furado e de Fernandaires.

Posto de Turismo
Parque de Feiras. Vila de Rei
GPS: 39.674076,-8.146476
Tel.: 274898749
www.cm-viladerei.pt


GÓIS

Onde comer

Praia fluvial da Peneda
GPS: 40.154381; -8.112419
Ao longo do Ceira, há vários espaços relvados que convidam a piqueniques e mesas de merendas.

A Tranca de Barriga
Rua Armando José Ribeiro
Cabreira – Cadafaz
GPS: 40.141573; -8.072396
Tel.: 235778003
Casa de ambiente acolhedor com uma cozinha tradicional.

Fazenda da Avó Thomázia
Praia fluvial da Peneda. Góis
GPS: 40.154381; -8.112419
Tel.: 918475566
www.facebook.com/FazendaAvoThomazia
Apenas aberto durante os meses mais quentes, oferece esplanada onde há desde pequenos-almoços até mariscadas. Todos os dias das 10h às 2h.

O Burgo
Sra. da Piedade – Lousã
GPS: 40.100044; -8.184092
Tel.: 239991162; 912784692
www.facebook.com/oburgo.dalousa.7
No espaço de uma antiga azenha, receitas tradicionais e todos os sabores da Lousã. Entre as especialidades há bacalhau com migas, veado com tortulhos ou javali com castanhas. De terça a sábado almoços e jantares; domingo só almoços.

Onde dormir

Casa Santo António
Rua Santo António, 18. Góis
GPS: 40.124605; -8.120876
Tel.: 235770120
Pequeno estabelecimento de ambiente familiar no centro de Góis. Há quartos individuais e suites duplas. Nos espaços comuns, sala de estar com bar, mesa de snooker e área de refeições.

Casas do Neveiro e da Cerejinha
Pena – Góis
www.casasdapena.com
GPS: 40.110508; -8.135283
Tel.: 239704089; 914009194
Duas casas reconstruídas em xisto e pedra rolada da ribeira. Ambos os espaços encontram-se completamente equipados.

Luar das Cortes
Cortes - Alvares. Góis
GPS: 39.990487; -8.106687
Tel.: 965802981; 919878029
Casa rústica, recuperada segundo a traça original, com sete quartos, em ambiente de aldeia. Inclui piscina e jardim.


O que fazer

Transserrano
Bairro S. Paulo, 2. Góis
GPS: 40.155459,-8.113455
Tel.: 235778938; 961787772
www.transserrano.com

Lousitanea - Liga de Amigos da Serra da Lousã
R. dos Bois. Aigra Nova – Góis
GPS: 40.120046,-8.154082
Tel.: 23577 8644; 969847852
lousitanea.org

Posto de Turismo
Praça da República. Góis
GPS: 40.155176,-8.110617
Tel.: 235770113
www.cm-gois.pt


PRAIA DE MIRA

Onde comer
Sendo terra de pescadores, em qualquer restaurante há garantia de peixe fresco ao longo de todo o ano. E, pela praia, encontram-se alguns com excelentes vistas sobre o mar.

Onde dormir

Quinta S. José
Barra de Mira 
GPS: 40.449854,-8.801205
Tel.: 231472480; 914 148 740
Casa familiar, com cinco quartos no edifício principal mais dois apartamentos (T1 e T2), em ambiente entre a serenidade campestre e a animação da praia.

Residencial Maçarico
Avenida Arrais Baptista Cêra. Praia de Mira
GPS: 40.454805,-8.803273
Tel.: 231471114; 917547435
Com frente mar, tem 18 quartos, sala de estar, restaurante, serviço de bar e terraços panorâmicos. Tem ainda parque privativo para os hóspedes.

Parque de Campismo Orbitur
Estrada Florestal. Praia de Mira
GPS: 40.453620,-8.801740
Tel.: 231471234/54
Além da área de campismo, possui bungalows equipados para até 7 pessoas.

O que fazer

Museu do Território da Gândara
Av. 25 de Abril – Mira
Tel. 912629239
GPS: 40.429328,-8.737384
www.cm-mira.pt

Museu Etnográfico da Praia de Mira
Av. da Barrinha
GPS: 40.455063,-8.784447
Tel.: 231472566
www.cm-mira.pt

Sítio do Cartaxo
GPS:40.437710,-8.745960
Tel.: 231455588
www.aamarg.org


RIA DE AVEIRO

Onde comer

Clube de Vela
Avenida José Estêvão. Gafanha da Encarnação
GPS: 40.635916; -8.693179
Tel.: 234360250
Além de mariscos, serve outros peixes como garoupas, sargos, salmonetes, lulas, chocos, carapaus, sardinhas. A destacar ainda o arroz de polvo ou de tamboril com gambas, a caldeirada de enguias, a caldeirada à fragateira e o arroz de marisco.

A Praia do Tubarão
Av. Marginal José Estevão. Gafanha da Encarnação
GPS: 40.635916; -8.693179
Tel.: 234369602
Sala acolhedora, decorada com motivos marítimos e em cuja ementa há dois ou três pratos regionais em que brilham as enguias, o rodovalho, as amêijoas, Caso se tenha o cuidado de encomendar, também se assam peixes inteiros no forno: robalo, por exemplo.

MercaDoPeixe
Largo da Praça do Peixe. Aveiro
GPS: 40.642274,-8.655455
Tel.: 234383511
Localizado no primeiro andar do Mercado do Peixe de Aveiro, com janelas que dão para o Cais dos Botirões, vizinho dos canais de São Roque e dos Marnotos. Entre as especialidades, cataplanas e caldeiradas.


Onde dormir

Casa da Ria
Rua Arrais Ançã, 18. Costa Nova
GPS: 40.609710; -8.749598
Tel.: 234390170
Junto à Praia da Costa Nova, oferece acomodações modernas e espaçosas. Alguns quartos têm vista panorâmica sobre a ria.
 
Hotel de Ílhavo
Av. Mário Sacramento, 113. Ílhavo
GPS: 40.601793; -8.670030
Tel.: 234329860
Pequeno hotel (36 quartos) a cinco minutos da praia. Inclui piscina exterior, spa e restaurante Casa Velha.
 
Meliã Ria
Cais da Fonte Nova - Aveiro
GPS: 41.0520942; -8.6041594
Tel.: 234401000
www.meliaria.com
Quatro estrelas localizado sobre a ria de Aveiro. Tem 128 quartos, vista para a ria e spa.

O que fazer

Vela & Ria
Embarque e desembarque no Cais da Mota (Costa Nova do Prado).
Todos os dias, de Maio a Setembro; sob reserva de Outubro a Abril
Tel: 919570947

Ria de Aveiro Kite Club
Rua da Seca. Gafanha da Encarnação
GPS: 40.593013,-8.698250
Tel.: 931196309
www.aveirokitesurf.blogspot.com

EcoRia
Rua João Mendonça. Galerias do Rossio – Aveiro
GPS: 40.641575,-8.655267
Tel.: 967088183
www.ecoria.pt

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