Parece-nos que o dia mal nasceu, mas pelas ruas que palmilhamos já andam centenas de pessoas. A pé, de jipe, de moto, a cavalo. Todas com o mesmo destino: ir fazer o encerro dos bois para cumprirem uma capeia arraiana, “uma tradição única no mundo” que consiste no acto de receber o boi ao forcão, um triângulo de 4,7m x 4,5m x 4,7m, executado em madeira de carvalho e que pesa cerca de 300 quilos. Uma unicidade que fez com que aquela tenha sido, em 2011, a primeira manifestação cultural a ser registada no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.
Para nós, sem ponta de febre tauromáquica no corpo, as festas que invadem em Agosto nove aldeias do concelho do Sabugal, distrito da Guarda, revelam-se estranhas. E, já se sabe, tudo o que envolve tourada pode ser fascinante para um grande número de gente, mas desconfortável para outro tanto.
Mas, como muitos sublinham, n’ Aldeia da Ponte, n’ Aldeia do Bispo, n’ Aldeia Velha, em Alfaiates, nos Foios, nos Forcalhos, na Lageosa da Raia, na Rebolosa e no Soito “não se pica, não se espeta, não se maltrata os bois de forma alguma”. Por isso, antes ainda de partirmos pelos caminhos poeirentos, sacrificados pelos rodados de motos e carros, tratamos de pôr preconceitos à parte. Até porque, mais do que encetar teorias sobre o facto, nesta que é a primeira capeia do ano, a da Lageosa, o que é preciso mesmo é juntar e apanhar os animais, libertados na véspera. Aliás, apanhar não é o melhor termo; a única coisa que se faz é encaminhá-los, usando para tal a ajuda dos mansos cabrestos. Já os bois assumem a missão de imprimir animação a rodos. Ora fogem, ora investem; ora viram à direita, ora invertem a marcha.
Como no preciso momento em que chegamos ao local onde estariam a ser cercados. Ao mesmo tempo que saltamos uma vedação de arame farpado para nos pormos a salvo (e nele deixamos um bocadinho do tecido das calças), várias pessoas saltam para carrinhas de caixa aberta ou para dentro dos jipes. Nós também acabaríamos dentro de um, cujo proprietário nos levaria numa corrida atrás dos animais. Ouvem-se roncos de motos e gritos que nos orientam na direcção dos bichos — “Estão a ir para baixo! Estão a ir para casa.”
Os bois escolhidos pela aldeia da Lageosa fazem parte de uma ganadaria local — do Zé Nói, informam-nos — e assim que se sentiram acossados, em vez de alinharem no caminho proposto que os levaria à praça daquela aldeia, optaram pelo trilho contrário. Pelo caminho, um dos bois ainda consegue atingir um cavalo. Mas nada que tivesse um desfecho dramático. Pelo menos no local: o animal foi retirado do lameiro e transportado ao veterinário.
Ainda faltava conseguir que os bois alinhassem no jogo. Porém, continuamos a vê-los a passar de um lado para o outro. Alguns, cansados, desistiram de fugir e enfiaram-se entre as densas giestas. Vários homens gritam-lhes como que a desafiá-los, mas a sombra da giesta e o momento de repouso parece ser mais aliciante.
Já sobre os restantes, as informações contradizem-se: uns dizem que agora só se conseguem apanhar no alto, outros que o melhor é tentar travá-los antes que passem a estrada. Junto ao asfalto, carrinhas, motos, jipes posicionam-se estrategicamente no topo dos maciços de rocha. Alguns aproveitam o momento de pausa para a merenda: dos carros vão saindo pão e queijos, presuntos e chouriças, além de garrafões de vinho. Outros, como um grupo de mulheres, literalmente dos oito aos 80 anos, numa carrinha de matrícula espanhola, permanecem nos poisos mais cimeiros de onde conseguem acompanhar a acção. Mas há ainda quem se prepare para tudo. É o caso de uma mulher que não tira a mão de uma árvore à beira da estrada. De vez em quando há um alarme falso de que os bois vêm aí. E então, além da mão, a mulher coloca o pé a jeito no tronco. “Estás a preparar-te para trepar?”
Quando os bois brincam
“Assim é que tem graça”, confessa o nosso salvador de Alfaiates que anda por aqui pelo gosto mas também pelo negócio. “Vou apanhando uns e outros e ao fim do dia juntam-se todos lá no bar [Muralhas] para ver os filmes.”
Mas, para já, o filme a que assistimos anda entre uma doida metragem de acção e um clássico western. Por nós vão passando cavaleiros de suor a escorrer em bica montados em cavalos que já agradeciam o descanso. “E nem sequer está o calor que costuma estar”, dizem-nos. Alguns animais vão acusando o nervoso; outros parecem nascidos para isto, como os cães do ganadeiro, mui temidos pelos bois. “Deitam um boi ao chão num abrir e fechar de olhos.”
Entretanto, já subimos em todo-o-terreno até ao talefe (marco geodésico), já voltámos a descer, já fomos quase até à entrada da aldeia — onde por um momento se temeu que a manada entrasse sem guarida —, já voltámos ao ponto inicial. Até que, por fim, uma nuvem de pó anuncia o que todos esperam: os cavaleiros e os homens que correm de cajado na mão conseguiram encaminhar os bois até ao caminho pré-destinado e vêm agora na nossa direcção para depois subirem ao talefe. O nosso condutor adianta-se e voa colina acima até nos deixar frente a frente com a imponente manada. Depois, é voar colina abaixo, cortando caminho, para chegar à entrada da aldeia antes da comitiva que acompanha os animais, estacionar o jipe e correr. Sem olhar para trás.
Não seria apenas na Lageosa que os bois brincariam com quem queria brincar com eles. No dia a seguir, na Rebolosa, o cenário repetir-se-ia. De tal maneira que, para escapar à fúria dos animais, o fotojornalista da Fugas ver-se-ia forçado a trepar com a máquina a tiracolo para cima de um tractor que acabaria por levá-lo a reboque e aos solavancos pelo lameiro. Já pela praça — no caso da Rebolosa, foi construída uma arena fora do perímetro da aldeia —, muitos aguardam impacientemente a chegada dos bois. E com vários cuidados extra. É que a memória do ano em que encerraram os bois e se esqueceram de fechar a porta ainda está muito viva: “Eles entraram, deram a volta à praça e voltaram a sair por onde vinha toda a gente a entrar. Foi um salve-se quem puder. E nem sei como não houve desgraça maior”, contam-nos com um misto de euforia e de alívio.
O sol já está a pique e bois nem vê-los. De prevenção, um camião estacionado trouxe alguns animais directamente da ganadaria para que não se fique sem capeia. “Mas não é a mesma coisa e ninguém quer começar uma capeia sem pelo menos conseguir encerrar um boi.” Por isso mesmo, a espera continua. E, ao fim de dois ou três alarmes falsos, eis que surgem os imponentes bichos no corredor que lhes fora destinado. Aqui, há que dar a mão à palmatória. Não se percebe muito bem porquê, mas parece impossível ficar-se indiferente perante o explodir da alegria da assistência. E a entrada, no caso de apenas um boi e de uma mão-cheia de cabrestos, gera uma onda de comoção.
Histórias de cornos e capeias
“Aqui para haver festa basta haver cornos… e minis”, explica, entre risos, Fernando Lopes, um fervoroso adepto da capeia arraiana e professor de Filosofia com largas horas dedicadas ao estudo daquela prática. Pelos andaimes a improvisarem uma plateia circular à volta da praça central da Lageosa, vê-se gentes de todas as idades e géneros. “Está-nos no sangue”, desabafa José Ramos, 44 anos e natural de Lisboa, embora prefira dizer ser natural da aldeia: “Só fui a Lisboa nascer”. Por isso, confessa passar “um ano inteiro a pensar nestes dias.” Quem parece concordar consigo é o filho de 11 anos que, ainda antes de o pai se levantar, já está pronto à sua espera.
O mesmo acontecia quando os bois chegavam de Espanha. “Os touros espanhóis fugiam para cá em busca de água e de alimento (…) e os donos ofereciam um ou outro animal para compensar os prejuízos”, resume Esteves Carreirinha, de 59 anos e natural da Aldeia da Ponte. Com os animais vinham os “capinhas” espanhóis que davam espectáculo em troco do dinheiro oferecido pela assistência. “É daí que vem o nome capeia”, informa o mesmo homem que, depois de ter ido para Lisboa no início da década de 1970, vai voltando sempre também pelo forcão. “Fui em 1972 [para Lisboa] e um ano depois voltei por um fim-de-semana, para a capeia.”
O então jovem Esteves acabaria por ir ao forcão e ser apanhado por um boi. O momento foi registado a preto e branco e habita agora um lugar de destaque na parede da sua fresca e empedrada sala. “No dia a seguir nem me conseguia mexer, mas lá fui para Lisboa apresentar-me ao serviço”, recorda animado. “E ficou com medo de lá voltar?”, é a pergunta que nos assalta. “Oh! Ainda hoje, quando posso ou quando estou mais animado, lá vou.” A “maluquice” pelos bois parece ter nascido consigo. “Eu e outros, os mais bardinos [estróinas], até faltávamos à escola; às vezes, de um grupo de 30, 15 faltavam só para ir ver os touros.”
Do lado de fora da arena da Lageosa, Lopes condensaria a paixão pondo a capeia arraiana e o futebol numa espécie de balança imaginária: “Em miúdos, na escola, pouco jogávamos à bola; preferíamos brincar ao forcão. E, pelos cafés das várias aldeias, quando a televisão transmite uma partida de bola, há barulho, conversas; quando se trata de uma corrida à portuguesa é um silêncio absoluto.”
Por tudo isto, numa altura em que “não havia nada para fazer” — “o nosso divertimento era juntarmos os tostões que tínhamos, ir comprar um bocado de carne e fazer uma patuscada que durava a noite fora”, lembra Chico Sara, de 75 anos —, não eram raras as vezes em que se atravessava a fronteira para ir buscar uns bois sem autorização.
“Aqui na parte portuguesa não havia bois — e aqui é obrigatória a pausa: não obstante o facto de muitos usarem a palavra touro no seu discurso, alguém mui veemente nos frisou: “Aqui não há touros, há bois!” — e só os poderíamos arranjar em Espanha, onde a tradição destes animais era grande”. Chico Sara ainda se lembra do tempo em que se juntava “um grupo de rapazes que, à falta do que fazer, decidia fazer uma capeia”. E, sem animais deste porte nestas terras, lá iam “a Espanha para trazer uns quantos ‘emprestados’”.
“Íamos de noite [e nessa altura não havia luz eléctrica], às vezes com uns candeeiros a petróleo, outras às apalpadelas”, recorda, divertido e de olhos a brilhar, o septuagenário. “A pé, juntávamos uns quantos bois e trazíamos os bichos pelos campos fora. Às vezes fugiam e, no dia a seguir, havia quem encontrasse um boi a mais no curral. Outras, fazíamos as nossas brincadeiras e depois soltávamos os bois. E estes iam direitinhos para casa.” “Era [uma festa] mais alegre…”
Nem sempre a brincadeira acabava bem, como relata Esteves Carreirinha: em 1942 ou 43, um dos mais valentes dos rapazes que propôs uma capeia nocturna foi morto a tiro pelos carabineiros. “O ganadeiro espanhol deve ter estranhado o cansaço dos bois e pôs gente de vigia.” A tragédia abrandou o ritmo das vezes em que se ia a Espanha apanhar os animais mas não desanimou ninguém e apenas no fim da década de 1950 se acabou definitivamente com as idas e vindas ilegais. A partir daí passou-se a proceder ao aluguer dos animais, com a guarda fronteiriça de ambos os países a facilitar o negócio e a deslocar-se aos lameiros onde os bois iam passar: “Lembro-me perfeitamente da troca de documentos na fronteira”, conta José Ramos. Mas, depois, veio “a língua suja”, como é comummente conhecido o vírus da língua azul, “e os bois passaram a ser arranjados nas ganadarias locais”. No entanto, defendem alguns, “não são tão bravos” como os espanhóis. E, como relembra Esteves, “antigamente esperava-se sempre o maior touro”. Porque seria esse que melhor atestaria a valentia e o espírito temerário dos que faziam a lida do forcão.
“Acima de tudo, [a capeia arraiana] é um ritual de passagem de rapaz a homem; uma prova de virilidade”, sublinha Fernando Lopes, que salienta ainda o facto de essa necessidade fazer parte também das artes do cortejo às raparigas.
Um forcão, uma dança
A origem da capeia arraiana e, consequentemente, do forcão não reúne consenso. A única coisa sobre a qual parece haver certeza é o facto de ser “muito, muito antiga”. É que, se escrita a tradição aparece pela primeira vez em 1886, num conto de Abel Botelho (Uma Corrida de Toiros no Sabugal), todos dizem que já ouviram relatos da capeia aos avós, que por sua vez teriam escutado dos seus próprios avós.
“O mais provável é que o forcão tenha sido trazido pelos romanos, que o usariam para o domínio das feras”, considera Fernando Lopes. Esteves Carreirinha parece estar de acordo consigo: “Tendo em conta a força dos animais, teriam de os forcar contra uma parede para os dominar.”
Porém, a certa altura, “adquire um certo cariz militar medieval”, constata Lopes. O chamar os rapazes “Oh Forcão” era como que “chamar os jovens à guerra”. E todo o ritual continua a obedecer a trâmites militares: depois do encerro, a praça é pedida à mais alta individualidade presente, militar ou política. O pedido é feito pelos mordomos a cavalo e a exibirem as várias insígnias (espada, bandeira e ramos). E arranca a capeia.
Entra o forcão e, dependendo da aldeia, um considerável número de homens (solteiros, dizem-nos — mas todos, desde que da aldeia, acabam por alinhar, até os mais novos, para os quais estão reservadas as bezerras) para o agarrar. Trinta foi o número máximo que nos indicaram. Mas podem ser menos. De seguida, o boi (o primeiro, o boi da prova que entra na arena logo de manhã, serve para mostrar a valentia dos animais que ainda hão-de vir à tarde) que, defende Lopes, “é uma espécie de voluntário”: “É o touro que vai ao forcão e não o oposto.” Embora, quando o boi se mostra enfastiado, haja sempre quem o vá desafiar.
Só depois se dá início à dança, ao medir de forças e, acima de tudo, ao medir do medo. “Tem de haver coordenação e para isso o manuseamento do forcão — que deve ser um triângulo perfeito — deve obedecer a uma espécie de coreografia harmoniosa.” Basta que alguém erre um passo para que se corra o risco de ver o touro a passar por baixo do forcão, a saltar sobre o utensílio ou a escapar-se para os lados, investindo nos homens que o seguram. Nesses casos, o que acontece muitas vezes é que “alguém larga o forcão e salta para a cabeça do touro”, minimizando os danos, relata Carreirinha. E então já não é capeia.
Mas a maioria das vezes o que acontece é o animal sair em corrida contra as galhas, causando um impacto tal que, mesmo entre a assistência, sente-se todo o corpo a estremecer. E é então que, depois de sentir a adrenalina a percorrer cada músculo e a invadir o cérebro, se torna mais fácil compreender, mais do que a tradição, o vício.
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GUIA PRÁTICO
Datas das capeias
6 de Agosto: Lageosa da Raia
GPS: 40.3421115 / -6.8243812
7 de Agosto: Rebolosa
GPS: 40.4236124 / -6.9048148
10 de Agosto: Soito
GPS: 40.3571372 / -6.9581483
2.ª segunda-feira de Agosto: Aldeia do Bispo
GPS: 40.3151253 / -6.8511814
15 Agosto: Aldeia da Ponte
GPS: 40.4207791 / -6.8672668
17 Agosto: Alfaiates
GPS: 40.3912278 / -6.9134957
3.ª segunda-feira de Agosto: Forcalhos
GPS: 40.3678177 / -6.8190224
Terça-feira a seguir ao 3.º fim-de-semana de Agosto: Foios
GPS: 40.2773155 / -6.8887202
25 Agosto: Aldeia Velha
GPS: 40.3382943 / -6.8887202
Há ainda o concurso Oh Forcão Rapazes, em data móvel, mas sempre por volta do 20 de Agosto, que envolve as nove aldeias.
Onde dormir
O Pelicano
Estrada Nacional 233. Alfaiates
GPS: 40.3912278 / -6.9134957
Tel.: 271 647 560
Uma residencial familiar, onde não é difícil ter a sensação de se estar em casa. O acolhimento é simpático e afável; os 38 quartos cumprem requisitos básicos de conforto e nas traseiras uma piscina garante momentos refrescantes. Inclui acesso gratuito à internet.
Casas da Pedra
Rua Alferes António Luís Inácio, 10. Aldeia do Bispo
GPS: 40.3151253 / -6.8511814
Tel.: 271 496 224 / 967 195 475
www.casasdapedra.com
Seis casinhas recuperadas, independentes e equipadas, que compõem um conjunto bem no centro da Aldeia do Bispo. Inclui acesso gratuito à Internet e kitchenette equipada com micro-ondas, frigorífico, máquina de lavar louça e talheres.
Hospedaria Robalo
Rua António José d’Almeida, 53. Sabugal
GPS: 40.3503926 / -7.0877918
Bem no centro do Sabugal, uma unidade em que os quartos se destacam pelos equipamentos novos e modernos. O serviço é simpático; a limpeza irrepreensível. Inclui acesso gratuito à Internet.
Onde comer
Zé Nabeiro
Rua das Hortas. Soito
GPS: 40.355684 / -6.96659
Tel.: 271 605 116
A ementa é básica – carnes grelhadas, salada e pão –, mas a confecção, à lareira e à vista de todos, transforma qualquer refeição num momento inesquecível. Além do mais, as entremeadas são crocantes, a vitela desfaz-se na boca e o fígado chega no ponto. Para sobremesa: prato de queijos. À quarta-feira, há canja de cornos, especialidade criada pelo proprietário.
Restaurante El Dourado
Av. 25 de Abril, 22. Foios
GPS: 40.2773155 / -6.8887202
Tel.: 271 496 333
Sabores tradicionais servidos numa sala em pedra que honra a região. Entre as especialidades, borrego na brasa e javali.
O Martins
Av. N. Sra. de Fátima, 12. Soito
GPS: 40.3611274 / -6.9728419
Tel.: 271 511 237
Espaço amplo com uma cozinha baseada em produtos regionais. A especialidade é o borrego na brasa.