Mas é aqui que estou, e portanto vou pensar em mesas daqui como as que ficaram nos textos do David, mesas que não acabam porque trazem memória, transformam-se em memória e ligam-nos.
2. Então penso naquela moqueca de cherne e camarão que comi com amigos, saindo do Rio de Janeiro para Grumari, varanda de madeira com vista para o manguezal, e mais além a Restinga da Marambaia, longa cauda de areia flutuando no Atlântico.
Éramos quatro para uma moqueca, quer dizer, um alguidar de barro a borbulhar que ocupou todo o centro da mesa, ervas frescas por cima, cachaça mineira em volta, caipirinha de limão. No Brasil, limão é o que em Portugal é lima, e cachaça tem de ser de Minas, aprendi.
Era começo do Verão, íamos acabar na praia, pedra ainda quente ao anoitecer, mas nem no maior calor aqui se pensa em peixe nu com sal.
Em seis meses de Brasil só me lembro de um cherne grelhado: foi no Bar Urca, aos pés desse morro chamado Pão de Açúcar, onde alguém na mesa ao lado certamente nos vai contar a história de como foi aqui que primeiro os portugueses fincaram pé, e por isso a primeira rua do Rio fica na Urca e se chama Rua de São Sebastião (do Rio de Janeiro).
O Bar Urca renasceu com um português, restaurante em cima, boteco em baixo, e o murinho da baía como esplanada geral, onde meio mundo se senta a beber cerveja gelada com pastéis de siri e catupiri. Assim almocei numa manhã com dois irmãos mineiros, os três empoleirados sobre a baía de Guanabara, cerveja gelada antes mesmo do café-da-manhã, noite emendada na manhã, manhã a emendar a tarde, nos dias infinitos do Carnaval.
Nem sabia então que no primeiro andar do bar havia peixe quasenu, quase-só-grelhado, sim. Ficou para o fim do Verão, com outro amigo, e na mesa do lado o tal lusodescendente que sabia tudo sobre a chegada colonial.
Dizem-me que é por as águas serem quentes, isso de o peixe aparecer sempre desfeito, molhado e fervilhante, pedindo um arroz, uma farofa, uma pimentinha. Mas talvez seja como lamentar o azeite que vem todo de fora, o vinho que vem todo do Sul, o pão que só não é o pior do mundo porque existe a Espanha.
Pois se estamos diante de uma moqueca em Grumari, o que há a fazer é dar graças por estarmos diante de uma moqueca em Grumari.
3. Minas dá muito à mesa.
Em Araçuaí, comi feijão tropeiro e migas, achando que eram primos alentejanos. Em Diamantina, aqueles queijos que vão para todo o Brasil, frescos e curados. Em São Gonçalo, doces e licores de mil frutas, de mil cores, até verdeesmeralda.
Em Belo Horizonte, cachaça pura a acompanhar cerveja.
Com duas mineiras me estreei num templo da Lapa carioca, o Nova Capela, a comer pedacinhos de cabrito esturricado, e num boteco do Largo do Machado a abrir bolinho de bacalhau para pôr pimenta dentro.
E com outro mineiro me converti ao caldinho de feijão polvilhado de salsa e torresmos, naquele boteco do Flamengo onde às segundas à noite toca uma roda de chorinho.
Mais arrisco que a melhor feijoada do meu mundo até agora conhecido foi em casa de um mineiro, num pequeno apartamento do Bairro de Perdizes, entre milhares de torres paulistas.
Não sei de onde era a cozinheira, mas a partir daí qualquer feijoada se tornou um desafio, da couve à linguíça.
Mineiro à mesa é vocação.
4. Uma mesa memorável em São Paulo: o bistrô do Arábia, onde com uma amiga paulistana comi grande falafel e grande húmus, depois de numa primeira visita ao restaurante "mãe" ter provado "esfihas" com nozes, pastéis triangulares que nunca provei no Médio Oriente. No Brasil, onde moram mais libaneses que no Líbano, as "esfihas" são tão comuns como bolinho de bacalhau.
Ou a minha primeira vez num sushi e sashimi ao quilo, modesto buffet do Bairro da Liberdade escolhido pela nipo-brasileira que me contou a epopeia da imigração japonesa no Brasil.
Ou aquele risoto de pêra e gorgonzola numa cantina de Higienópolis, de onde nasceu um acordo para o trânsito de alguns livros sem necessidade de nenhum acordo ortográfico.
5. E a água de coco no calçadão? E o açaí gelado na esquina? E os biscoitos Globo na praia? E a picanha tão fina? Coração? Maminha? Coisas do Brasil, como cerveja de litro partilhada em copinhos.
Ou ovos de codorniz. Aipim frito.
Carne seca. Maracujá à colher, ou com cachaça, trincando as sementinhas.
Não tem grelos, não. Muita coisa não tem, até sal bom (ou é pó, ou é pedra para churrasco). Mas quanta coisa que tomara Lisboa.
Por exemplo, um mercado de favela com verdes-tão-verdes, afrodescendentes cuidadosamente compostos em tacinhas, espinhosos ou oblongos, como o quiabo.
O que não escreveria o David sobre um frango com quiabo, cozinhado por uma daquelas nordestinas lá na Rocinha, para uma mesa de amigos.
in Público, P2 (30-04-2011)
***
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