Os três chefs despediram-se do palco distribuindo pela assistência pedacinhos de massa mãe de centeio, começada há dois meses e meio e que cada um dos presentes levou para casa, prometendo tratar dela como se a sua vida dependesse disso.
Sal
Primeira constatação que João Rodrigues (Feitoria) partilhou com o público: “O sal é o ingrediente mais usado na cozinha mas nunca é olhado como um ingrediente em si mesmo.” Está lá sempre para realçar o gosto dos outros. No entanto, nunca passa despercebido — quando está em excesso nota-se logo, quando é pouco, sentimos-lhe a falta.
O mais importante para este grupo — que incluía Hugo Brito (Boi-Cavalo), Luís Barradas (Tago’s), Manuel Maldonado (Ostraria) e Leandro Carreira (Londrino, Londres) — foi a possibilidade de “sair para a rua, viajar um pouco pelo país e conhecer pessoas que fazem um trabalho fantástico”. Foram perceber, primeiro, que tipos de sal artesanal existem em Portugal e, para isso, visitaram as salinas onde, pela acção do sol, se produz o “sal do mar”, e as minas de onde se extrai o “sal da terra” a partir da rocha — a única que existe em Portugal fica no Algarve, em Loulé; o sal de Rio Maior também vem da rocha, mas chega a nós trazido pela água que passa por ela.
Estudaram as características de cada um e dissociaram-no nos dois componentes essenciais: cloro e sódio. E, depois do trabalho de campo, juntaram-se na cozinha a desenvolver ideias. Leandro dedicou-se a ver como resultava a cura em sal de diferentes frutos. “A textura da pera ao fim de um mês e meio em sal é fascinante.” Também na mandarina, a técnica resultou numa “profundidade de sabor fantástica”.
Por seu lado, Hugo Brito tentou “curar abacaxi como se cura peixe”, numa espécie de gravlax, técnica usada por exemplo no salmão. A banana da Madeira foi igualmente objecto de experiências e surgiu a ideia de fazer uma massa deste fruto à semelhança da massa de pimentão.
Manuel Maldonado e Luís Barradas voltaram-se para outro aspecto do sal e procuraram a vida que existe no riquíssimo ecossistema que rodeia as salinas, tanto a fauna (que inclui as artémias, “muito saborosas, da família do camarão, com as quais se pode fazer uma pasta de camarão fermentada à semelhança do que se faz na Ásia), como a flora.
E, no universo da flora, Luís Barradas reencontrou muitas das coisas que sempre se habituou a ver (e comer) na sua infância em Setúbal, como o chamado funcho do mar, a salicórnia (que foi apresentada inteira e em pó) ou as salgadeiras, tudo plantas halófitas, que absorvem o sal do mar e podem ser usadas como substituto mais suave dele.
João Rodrigues trabalhou mais a cura de peixe através das algas. “Conseguem-se texturas completamente diferentes”, explicou. “Mas a minha ideia era também perceber os sabores secundários que íamos obter aqui.” Sublinhou depois como tinha sido uma experiência enriquecedora trabalhar em grupo e serem obrigados a sair das respectivas zonas de conforto.
E se já tínhamos guardado um pedaço de massa mãe como uma espécie de promessa de futuro, também o grupo do sal quis deixar um projecto a decorrer até à próxima edição do Sangue na Guelra. Por isso, e totalmente a propósito, pegaram numa guelra gigante de peixe e colocaram-na com sal numa ânfora para que fermente e se transforme em garum, o molho de vísceras de peixe que os romanos adoravam e que em Portugal se produzia em grandes quantidades, muito dele em Tróia, onde ainda se podem ver os antigos tanques onde as vísceras secavam ao sol.