Antes da ocupação da zona de São Vicente, descreve Maria José Ferro Tavares, teria sido ocupada a judiaria velha, acima da Porta d'El Rei. Entre os ofícios mais frequentes entre os judeus estavam os sapateiros, ferreiros, tecelões, alfaiates, mercadores e físicos.
Hoje mais cuidada do que há alguns anos, a judiaria da cidade já não guarda esses vestígios. Mas muitas casas e as ruas mantêm ainda o traço do bairro do final da Idade Média - pelo menos nas fachadas. "Os judeus não deixavam uma marca específica no urbanismo nem na arquitectura", explica Vítor Pereira.
Há, no entanto, uma elevada concentração de cruciformes - sinais nas ombreiras das portas. Uma forma de assinalar que quem ali morava eram cristãos-novos? Uma provocação dos cristãos velhos? Ou uma forma de cristianizar ou sacralizar o espaço, depois de os judeus terem saído? Não se sabe.
Outras memórias coleccionou Telmo Cunha, engenheiro electrotécnico. Com uma casa em plena judiaria - que na realidade corresponderá a três casas antigas -, foi-a preenchendo de objectos, peças de arte, livros e mobiliário relacionados com a presença do judaísmo na cidade e no país. Pensou em fazer um hotel de charme, não avançou por falta de coragem para lutar contra a burocracia. Mas diz que agora talvez. O impulso da Rede de Judiarias pode ajudar.
Trancoso: Um jogo de pista
Vamos a um jogo de pista? É Maria Rosa Pinto que, espreitando à janela, pergunta, apontando para a ombreira da porta em frente: "Já encontraram além a cruzinha?" Confirma, a seguir, que a casa antiga ao lado da sua será recuperada. Foi ela que a comprou e as pedras irão ser lavadas, ficando com a traça original.
Estamos na Rua da Alegria, junto da primeira muralha. Seria uma das principais vias da judiaria de Trancoso. E a cruzinha que Rosa Pinto nos pede para descobrir é apenas uma das muitas dezenas que se podem ver na vila. Em diferentes tonalidades, consoante a luz do sol e a hora do dia.
São marcas judaicas ou supostamente relacionadas com o judaísmo. Uma outra, reproduzindo quatro caracteres hebraicos, em forma de dois i e dois l voltados ao contrário, pode querer dizer "horror".
"Já se pode afirmar hoje com alguma segurança que não terão sido cristãos-velhos a gravar estes caracteres", diz Carla Santos, historiadora, que está a trabalhar na identificação do património judaico de Trancoso. Um levantamento feito já por Carmen Ballesteros identifi cou que quase todas as marcas são cruciformes.
Coloca-se, aqui, por isso, a mesma questão que na Guarda: marcas feitas por judeus para atestar a sua suposta conversão? Marcas de cristãos para humilhar judeus? Ou para afirmar a cristianização das casas, uma vez expulsos os seus anteriores proprietários?
Nada se sabe sobre a propriedade das casas dos judeus de Trancoso, explica Maria José Ferro Tavares. Ao contrário do que acontecia na Guarda, aqui as casas não eram da Coroa. Sabe-se, no entanto, que um quinto da população (150 em 800 moradores) era judaico em 1496, pouco antes do édito de expulsão. Uma comunidade importante. A tal ponto, conta Carla Santos, que, em 1481, os judeus pediram ao rei a ampliação da sinagoga.