Estamos no coração da cidade, no velho Forte, fundação portuguesa, esplendor britânico: a cidade vitoriana, testemunho do Raj em pedra amarelada, que resiste ao sol e às monções com ar digno mesmo quando em clara decadência - que espreita em todas as esquinas, ainda que o velho centro vitoriano seja a menina dos olhos dos governantes da cidade, mesmo os mais nacionalistas.
Este arco do triunfo quase em cima da água também é assim, em pedra amarelada (basalto), arcos, minaretes, decorações intricadas de inspiração na arquitectura medieval Gujarati - uma casca elegante para um interior quase todo ele oco. Do lado do ancoradouro, multidões (que são famílias inteiras, saris coloridos, turbantes, hijabs...) ocupam os parapeitos em cima da água - alguns esperam os barcos, outros observam apenas o movimento, de gentes que vão e vêm. Mas é do lado de "dentro" que se concentram a maioria dos visitantes, na ampla esplanada que o sol não poupa, sob o olhar de estátuas de alguns heróis maratas e fechada por uma vedação tosca, que se ultrapassa passando detectores de metais, aspecto arqueológico no desleixo (não funcionam, claro), herança provável dos ataques terroristas de 2008 que visaram locais turísticos. Os visitantes acotovelam-se e chocam com os vendedores: vendem brinquedos e drogas, comida e bebida, desenham retratos e tiram fotografias, que imprimem logo ali, em impressoras portáteis (nada é ao acaso por estas paragens: onde se detecta uma necessidade, oferece-se o produto - completo).
Nas fotografias, sejam dos "profissionais" ou dos amadores, o mesmo ritual - a Porta da Índia como cenário ou o Hotel Taj Mahal, que se ergue opulento já ali ao lado, inconfundível no seu estilo mourisco e cúpulas avermelhadas. Quando saímos do recinto vedado, sombra, finalmente, de árvores gigantescas, quais fantasmas deixando pender tentáculos sobre quem passa. Os vendedores continuam, as mãos estendem-se em súplica - e há raparigas que trocam pulseiras de flores perfumadas por dinheiro para o leite dos bebés que carregam nos braços.
Chegar ao Taj Mahal Hotel a dois passos é difícil, há polícias na rua e barreiras cuja lógica de transposição é difícil de destrinçar. Mais fácil é compreender o porquê da sua existência: o hotel foi um dos alvos dos terroristas em Novembro de 2008 e esteve três dias ocupado. É um dos mais luxuosos hotéis asiáticos, um exemplo da arquitectura colonial com uma história anti-colonial: foi construído em 1903 por um grande industrial parsi a quem foi recusada a entrada no Watson"s Hotel, na altura o melhor hotel da cidade e aberto a brancos, apenas. Uma "vingança", portanto, que se serviu quente mas não arrefeceu - hoje o Watson"s, onde foi projectado o primeiro filme na cidade, é um edifício arruinado (o hotel já fechou e parece agora ser mais um chawl, um edifício de habitação colectiva, improvisado) na Mahatma Ghandi Road e o Taj Mahal um ícone de Bombaim, com porta flanqueada por imponentes porteiros Sikh e Gurkha.
E o trilho dos ícones de Bombaim leva-nos pela Mahatma Ghandi Road, a partir da Praça Wellington, rotunda-fonte imensa rodeada de edifícios imponentes, herança do Raj. Vemos a National Gallery of Modern Art (casa da arte indiana contemporânea, sob a figura tutelar do artista goês F. N. Souza, e com Picasso à mistura) de um lado, o quartel da polícia do outro, estilo indo-gótico; o Hotel Majestic é agora Shakari Bhandar, mais linhagem gujarati em minaretes e varandas ornamentada e o Cinema Regal (um dos muitos da cidade) intromete-se em estilo Art Déco. E espreitamos o jardim do Museu do Príncipe de Gales (a revisão da história indiana através da arte - impressionante colecção de dois mil quadros em miniatura -, arqueologia e natureza, a galeria budista, e a arte nepalesa e tibetana são os seus pontos fortes), luxuriante como os jardins indianos (verde saturado, cores excessivas, palmeiras prósperas) que são, porém, raros em Bombaim. O edifício do museu é um capricho em estilo indo-sarraceno, inaugurado oficialmente em 1923, depois de ter servido de hospital durante a I Guerra Mundial.