5.
A meio da Avenida de Mayo, um magote de turistas guarda a porta do Café Tortoni onde se sentou Borges e etc. É como em Lisboa a Brasileira, só que com fila. Uma vez lá dentro, ao fim de uma meia hora, será preciso sonhar com as paredes, os lustres, os espelhos, a sala dos fundos com um Borges de cartão, o palco onde quem sabe cantou Gardel. Os lugares tomados pelo turismo desafiam a imaginação: como não ouvir este sotaque texano, como não ver estes pacotes de mostarda. Mas o café Tortoni é o sotaque texano e os pacotes de mostarda. Foi Borges, foi Gardel, e é isto, como Lisboa, como Alexandria. Leio que Gardel cantou para Pirandello na cave do Hotel Magestic, e que Lorca ficou seis meses no Hotel Castelar, nesta mesma rua. Entro: para ver o quarto de Lorca há visitas marcadas.
O café Los 36 Billares também vem nos guias mas não tem turistas. Vejo velhos a jogar bilhar na cave e muitas mesas vazias, com vitrais por cima, à espera de quem as acenda.
O fim da Avenida de Mayo é o Congresso. Famílias inteiras a viver em tendas esfarrapadas no parque em frente. Estendido num colchão encardido, queixo na mão, um homem de tronco nu olha para mim, que olho para ele. Eu sigo.
Qualquer lugar é o jardim de Borges, o dos caminhos que se bifurcam entre o que já vivemos e o que nunca viveremos. "Só o mistério nos faz viver", escreveu Lorca. Em Buenos Aires a clareza esgota-se em si mesma. Há que recomeçar no escuro.
6.
Cristian chega de autocarro à praça do Congresso. Foi a poeta brasileira Angélica Freitas quem nos pôs em contacto. Ele disse que ia trazer um livro para eu o reconhecer mas não há assim tanta gente. Vagueamos até um café que já foi uma livraria. O público leitor mudou-se para Palermo, diz Cristian. A avenida Corrientes, onde se viam filmes da Nouvelle Vague antes de se comprarem livros, já não é um lugar intelectual. Mas, sim, Buenos Aires continua a ler, e a fazer psicanálise, e a olhar para o Brasil como um mito.
- Que os brasileiros são mais felizes, que têm melhor sexo. Aqui toda a classe média faz terapia. Vivemos com muita frustração. É uma sociedade dura para sobreviver, muito burguesa. Há muita gente bem formada e é difícil encontrar trabalho.
Cristian nasceu em 1972, estudou Letras, organiza um festival de poesia (Salida al Mar) e trabalha como tradutor de português por amor ao português do Brasil, que aprendeu sozinho.
- Tradutores de português há 50. Tenho de competir com eles e muitos são meus amigos. Há uma sobre-educação aqui. A presença dos livros ainda é muito forte. Há muitos pequenos projectos, pequenas editoras. Mas não há uma editora grande como no Brasil a Companhia das Letras.
O buraco económico de 2001 deixou marcas, e antes houve um túnel.
- A ditadura foi muito forte, não só pelos desaparecidos, na economia, na cultura. O país entrou em queda até na educação pública, que sempre foi um orgulho. Nunca paguei um peso para me educar.
Agora, diz, o governo de Cristina Kirchner é bipolar.
- À segunda de direita, à terça de esquerda. Apoio-o porque conheço a direita, sei que é pior. Os governos de Nestor e Cristina fizeram coisas importantíssimas. Negociaram a dívida externa de uma maneira muito vantajosa para a Argentina. Recuperaram a reforma do Estado. Por isso em 2008, quando houve a crise mundial, a Argentina não sofreu tanto. Quem nunca trabalhou recebe hoje no mínimo 1800 pesos. Cerca de 320 euros.
- Mas Cristina continua a trabalhar com empresas internacionais. Extracção de ouro, arsénico na água que serve um milhão de pessoas, ela deixa. Eu sou peronista, fiz-me peronista na Europa, quando percebi que lá era um negro, alguém que é discriminado. Em Estugarda, a cidade mais horrível do mundo, pediam-me os documentos todos os dias.
Também terá acontecido a brasileiros. E hoje será Estugarda a querer vir para o Brasil.
- O Brasil é puro presente e projecção. Na Argentina fala-se da ditadura todo o tempo. É um problema não falar da ditadura, mas também é um problema falar da ditadura todo o tempo. Porque não se avança, não se avança.
Quando Cristian foi a Lisboa achou que nunca tinha visto um lugar tão parecido com Buenos Aires. Não a topografia, não a arquitectura, a atmosfera. De resto, não lhe falem em tango.
- Canta a dor como extorsão. É uma mentira do princípio ao fim. Todos os "tangueros" eram uns filhos da puta, não sofreram aquelas penas. E são oito passos, é militar, é um relógio, não podes dançar mal. A mulher é o controle remoto que o homem vai digitando. Muito machista.
7.
Mas eu quero ver a milonga ao ar livre no bairro de Belgrano, portanto vou ter com o João Pina e uma amiga dele "porteña": acontece ao fm da tarde num coreto. Pares de adolescentes e pares que já nem sabem a idade, primeiro aulas, depois roda livre, com veteranos. Sim, oito passos, mas que passos.
Acabamos a noite em casa de uma arménia bela como a Callas. Está de partida para a Suíça ao fim de uma temporada em Buenos Aires. Ninguém na festa parece ter mais de 50 anos mas vejo um livro sobre o genocídio arménio em cima da mesa. Há muitos arménios em Buenos Aires. Muitos europeus, muitos judeus, muitos turcos, muitos arménios. Muita bagagem.
8.
Na manhã seguinte, La Boca, bairro ribeirinho de ex-genoveses, deve ser o lugar com mais turistas por metro quadrado. Aqui, até o perigo se vende como "recuerdo" e o bandoneonista cobra pela fotografia. Tudo em três ruazinhas pintadas de cores vivas, à beira da água. Mas se andarmos alguns quarteirões, favela. Casas de tijolo à vista, lama.
9.
Mais adiante, San Telmo tem muitos turistas ao domingo de manhã, na feira de antiguidades, mas hoje é segunda. Cafés desertos, com mesas de 100 anos, esta mesmo onde Borges se sentou com o seu amigo Bioy Casares, chão aos quadrados, grandes montras para ver passar a vida.
Depois, rua fora, casarões hoje tomados por ateliers e galerias. Fecham à segunda porque estão abertos ao domingo, então é possível percorrer pátios e escadas como se o mundo tivesse acabado de acabar. Portas de madeira com o céu reflectido nos vidros. Cá fora, gatos enrolados ao sol. Lá dentro, uma arca de mortos: roupas, loiças, jóias.
10.
Colo-me à sombra e ao mármore, como os fugitivos. Cemitério da Recoleta, "retórica de sombra e de mármore", escreveu Borges, que não está cá. As pessoas vêm ver o túmulo de Evita mesmo com sol inclemente.
Há pirâmides, templos, obeliscos, anjos a despencarem das paredes. E em muitas portas, teias de aranha. Nunca mais se abriram.
No centro cultural ao lado, vejo duas imagens no pátio. Ambas têm uma lista de lugares que "não devemos esquecer jamais". Na primeira são campos de concentração nazis. Na segunda são campos de concentração da ditadura argentina: Esma, La Perla, El Vesubio, El Atlético, El Olimpo, Pozo de Quilmes, Mansión Sere, El Banco, La Escuelita, Automotores Orletti, El Campito, El Silencio.
11.
Apanho o "subte" para Flores. O "subte" é o metro e o metro é Buenos Aires. Estações como há um século, carruagens como as dos eléctricos lisboetas, meia carruagem de nariz num livro. Em Buenos Aires, à hora de ponta, as pessoas afastam-se do centro a ler, sentadas em velhas ripinhas de madeira.
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