1. 
Último copo em Rivadavia, 7178. As moradas de Buenos Aires são linhas  rectas que só os "porteños" sabem onde terminam. A avenida Rivadavia  vem lá do centro, da Plaza de Mayo, a das mães dos desaparecidos, e  quando chega aqui, por alturas do 7000, ainda vai longe do fim. 
O  bairro chama-se Flores, são duas da manhã. Não é a hora das  semi-prostitutas, explica Cristian. As que vimos de dia estarão em casa,  têm família, um emprego. A Argentina saiu do buraco na avaliação dos  mercados, mas tem famílias a dormir na rua. Muitos salários de quem vive  do salário não chegam. Em Flores, bairro com placas de "Albergue  transitório", as esquinas são um extra para as operárias de 30 e 40  anos.
Cristian sugere-me que leia "Las Noches de Flores", um  romance de César Aira, e "La ley tu ley", de Juana Bignozzi, para ele a  maior poeta argentina viva. Não preparei esta viagem, nunca li Aira nem  Bignozzi. Estou a tentar lembrar-me do último argentino vivo que li.  Vivo no Brasil como se a Argentina fosse outro planeta e Buenos Aires um  lugar imaginário, dos livros de Borges, Cortázar, Pizarnik, dos tangos  de Gardel e Piazzolla. Mas não trouxe um mapa dos clichés, ponho-me na  mão dos anfitriões: Cristian De Nápoli, poeta, "porteño".
Nunca  tinha usado um leque às duas da manhã, nem no Rio de Janeiro, em  Fevereiro. Venho do Rio de Janeiro e é Fevereiro, o meio do Verão. Não  cheira a pêssego, como num poema de Cortázar. Mais a flores e asfalto  quente. Demasiado quente para vinho, até.
2. 
Quatro dias antes, o meu primeiro anfitrião foi um português que fala quase "porteño".
- Não digo "che", nem "boludo" - ressalva ele.
"Che"  é pá, "boludo" é idiota. Era isso que dezenas de milhares de mexicanos  gritavam durante o Mundial de 2010 sempre que Maradona aparecia no écrã  da praça: ""Che", "boludo"!" A Argentina ganhou, o João lembra-se do  jogo.
João Pina, fotógrafo português trotamundos. Viveu anos em  Buenos Aires, por agora vive em Lisboa, mas este Verão anda pela América  Latina, prosseguindo um projecto pessoal sobre os desaparecidos das  ditaduras militares, e este fim-de-semana estava em Buenos Aires.
Então  comprei o bilhete na véspera, aterrei em Ezeiza, o aeroporto  internacional lá nos confins, vi como a cidade é tão maior do que eu  imaginava. 13 milhões? E o contrário do Rio de Janeiro na ausência de  morros, na relação com a água. Do céu, o Rio de la Plata parece chão de  barro.
É sexta à tarde. João vai fotografar Mirta Clara, uma  psicóloga que foi prisioneira da ditadura. Como por acaso estamos os  três no bairro de Palermo, ele vem buscar-me a pé e vamos os dois a pé  buscar Mirta. Isto não quer dizer que Palermo seja pequeno, quer dizer  que Buenos Aires é uma cidade onde três pessoas podem andar lado a lado  no passeio e os plátanos atenuam o sol. Ruas e ruas de plátanos,  acácias-rubras, jacarandás rosa.
Caminhamos até ao parque do  Rosedal tropeçando em turistas brasileiros, a nova classe média. Juntam  milhas e voltam de malas cheias, porque aqui tudo é mais barato,  "griffes" e "dulce de leche", além de que o "dulce de leche" não tem  comparação.
- A proximidade da Argentina com o Brasil começou no Lula - diz Mirta. - Antes éramos rivais.
Um  a olhar para hoje, o outro para ontem, adivinhem qual. Em Buenos Aires o  passado está por toda a parte: nos julgamentos de porta aberta, nos  postes com caras desbotadas, na cara dos "porteños". O número de  desaparecidos andará pelos 30 mil. Na próxima terça posso ir ver  depoimentos num tribunal, se quiser.
É a hora antes do poente. O  Rosedal enche-se de patinadores, ciclistas, "joggers". No meio há um  jardim de rosas. Mirta senta-se num banco. Olha a câmara de frente. Está  a fazer isto por João, e porque é argentina: não esquece.
3. 
 Jorge Luis Borges viveu em Palermo Viejo até aos 13 anos. O João não se  lembra onde e eu não faço questão de ver no Google (Serrano, 2135).  Passamos o dia seguinte a dobrar esquinas com cafés, cafés com livraria,  livrarias com café, nomes como Eterna Cadencia ou Livros del Pasaje.  Vejo mais romances de Clarice Lispector em destaque do que num mês de  Rio de Janeiro. Vejo mais gente a ler do que num ano de Rio de Janeiro.
Intervalo  para uma "parrilla", carne grelhada, às quatro da tarde, e prosseguimos  a rota das livrarias até ao centro. A deslumbrante El Ateneo, que era  um cinema, é uma montra de encandear turistas, e a avenida Corrientes,  Broadway de Buenos Aires, não ficará por menos: quarteirões de néons  chamando para o teatro, desde o "off" à revista com rabo de fora, e,  loja sim, loja não, livros em promoção por atacado, muito depois do  escurecer.
Daqui a nada serão onze e vinte como num dos contos  fantásticos de Cortázar ("A tristeza do cronópio frente a uma multidão  de famas que sobe Corrientes às onze e vinte"). Cortázar passou a  infância a ler, como Borges e parece que todos os argentinos. Mas nem  por isso deixou de ser recusado por editoras. Até na Argentina acontece.  Avanti.
Contornamos o estaleiro em volta do monumental Teatro  Colón, obras que neste claro-escuro parecem ruínas. Grades em volta das  praças para que os sem-abrigo não entrem. Avenidas que talvez sejam a  mais larga do mundo. Avançamos como se mal andássemos.
O Rio de Janeiro está sempre a dizer-nos que a vida é este momento. Buenos Aires vive acordada como se sonhasse.
4.  
Na manhã seguinte apanho o 152 para a Casa Rosada, sede da presidência.  A paragem é na lateral, do lado do balcão onde Evita falou ao povo.  Tenho de passar por baixo de umas arcadas cheias de sem-abrigo. Ao lado,  cartazes lancinantes pelo direito às Malvinas e "graffiti" a dizer:  "Cristina o nada".
Cristina Kirchner. O pior que ouvirei nestes  dias é ser um mal menor. Ou seja, ouvi mais bem do que mal. Cá está ela,  viúva-presidente no pátio da Casa Rosada, em dezenas de fotografias  coloridas e turistas a posarem com a guarda-de-honra.
A Plaza de  Mayo é em frente. Também está gradeada, há que procurar uma abertura.  Então pisamos a calçada com desenhos de lenços brancos, como os que as  mães de Maio trouxeram, quando começaram a vir aqui, pelos  desaparecidos.
Não avisto nenhuma mãe de Maio, só vêm à  quinta-feira, há-de explicar-me o João. Hoje, a Guerra das Malvinas  domina tudo: cartazes de veteranos e daqueles que querem ser  reconhecidos como veteranos. Daqui a dias a polícia vai dispersá-los com  jactos de água e a Argentina vai aceitar a mediação da ONU na disputa  pelas ilhas, versão 2012.
O céu está cinza, quase a cair. Ao fundo, o brilho dos arranha-céus de Puerto Madero.
Multimedia
Mais
Relacionados
Flores e fervor de Buenos Aires