Os berberes, que sempre trabalharam com mestria e inteligência o adobe, foram entretanto apanhados pelas malhas do progresso. Na Líbia, esse progresso chama-se petróleo. Em Ajila, a arquitectura de terra foi substituída por cimento e zinco, o burro e o camelo pelo automóvel, e o apelo do muezzlin passou a coexistir com a TV por satélite e a Internet, que apresenta um crescimento vertiginoso. Se Ajila tinha mil habitantes, hoje tem dez mil. Na Líbia, a prospecção e extracção de ouro negro não mexem apenas com as areias. Revolucionam hábitos e comportamentos. Dão volta às cabeças.
ENTRE LÍBIA E TUNÍSIA
Os ksares dos berberes
Bem mais para ocidente, entre a Líbia e a Tunísia, estranhas construções pontuam, aqui e ali, uma paisagem desolada. Por fora, parecem – e são – fortificações. Por dentro, lembram os favos das colmeias. A primeira reacção do visitante é a de se interrogar: como poderia alguém ter vivido em tão minúsculas habitações? Passado o espanto, percebe-se. Afinal, aquelas construções não se destinavam às pessoas, mas aos seus alimentos. Os ksares foram os armazéns colectivos que garantiram a sobrevivência das comunidades nómadas de berberes. Revelada a função, só se pode apreciar a sabedoria. O ksar exprime, afinal, uma cultura e uma forma de organização social muito singular – a dos nómadas do Magreb. Do ocidente.
Os berberes queriam-se e querem-se homens livres. Precisam, por isso, de espaço e de todo o tempo do mundo. O ksar evitava que eles tivessem que andar com a casa às costas. Porque livres, estes nómadas sempre resistiram aos invasores e aos cobradores de tributos, fossem eles romanos ou árabes. Mas também nunca quiseram dispor de uma autoridade única, centralizada.
Contudo, a resistência e a sobrevivência em condições de grande adversidade climática, de escassez e pobreza das terras, impôs um preço alto a essa iberdade – um sistema de valores singularmente rígido. A sociedade dos ksares é patriarcal, e o primeiro dever de cada elemento da família é o da obediência. Em consequência, a força ssume-se como valor em si mesmo, e como garante de um sistema sagrado de honra. Percebe-se a consequência.
A mulher é, apesar de decisiva para a estabilidade da comunidade, considerada um ser inferior. Eis então como é possível ser-se livre e prisioneiro, guerreiro e hospitaleiro, proprietário e solidário. Ou como, nos dias que correm, se pode ser sedentário por circunstância e ainda nómada de vocação.
MARROCOS
A Atlântida ali tão perto
Ainda mais a ocidente, as cadeias montanhosas de Marrocos contêm o avanço lento, mas contínuo, das areias. Nelas, em planaltos protegidos pelas cadeias do Médio e Alto Atlas, é a agricultura – e portanto, a sedentarização – que marca a paisagem. Trabalha-se com recurso às antigas técnicas e aproveitando ao máximo as terras mais elevadas. Os antepassados destes camponeses são imigrantes. Eles chegaram a Marrocos precedendo o movimento das areias.
Se as cadeias montanhosas de Marrocos contêm a tenacidade devoradora dos desertos, elas não evitam, contudo, que os campos se esvaziem de braços. As aldeias e cidades de adobe do Sul de Marrocos são fantásticas à vista. Mas nem por isso são menos ingratas as condições de vida e de trabalho. Mais tarde ou mais cedo, os descendentes dos primeiros imigrantes decidir-se-ão, também eles, pela partida. Antecipando de novo o caminho das areias. É assim. Tem sido sempre assim.