A pedra-que-pica (mesmo)
Tínhamos rumado a sul naquela manhã de sexta-feira ensolarada, encoberta a espaços por nuvens cor de algodão, para um primeiro mergulho. Saídos do fundo do mar, seguimos na direcção da Ponta do Castelo, no extremo sudeste da ilha. Vemos ao fundo o farol de Gonçalo Velho (herdou o nome do navegador que descobriu a ilha) mas o semi-rígido do Clube Naval de Santa Maria (CNSM) começa a abrandar o passo. Chegamos ao destino.
A cerca de 500 metros do farol, aos pés de uma enorme falésia que se precipita sobre as águas cristalinas do Atlântico, parece uma língua de areia branca vista de longe. Mas não é. Se dúvidas houver, atentem no nome: Pedra-que-Pica. O barco aproxima-se e percebemos que ali não há areia macia, que o chão que pisamos é pontiagudo e que as botas de mergulho não são o calçado ideal. Fica o aviso.
Para onde quer que olhemos num raio de cerca de 20 metros, só vemos fósseis. E mais fósseis. E um rasto da actividade vulcânica na ilha, com rochas rugosas de cor negra. Temos os pés sobre milhões de conchas desarticuladas de bivalves marinhos, algumas com mais de 20 centímetros de diâmetro, restos fossilizados de ouriços-de-areia, e sabe-se lá mais o quê. Diz-nos o guia, Paulo Ramalho, vice-presidente do CNSM e antropólogo, que aquela jazida fóssil tem cerca de cinco milhões de anos. É uma das mais antigas de Santa Maria, a única ilha dos Açores com fósseis marinhos.
Procuramos a explicação científica para o que parece ser um acidente geológico feliz. Depois de muito tempo sem actividade vulcânica, a ilha — que é a mais antiga do arquipélago, com sete a oito milhões de anos — ficou submersa, formando um gigantesco monte submarino. “Terá sido nesta altura, há cerca de cinco a seis milhões de anos, que os animais marinhos que nessa altura existiam se depositaram em grandes quantidades nos sedimentos marinhos”, no topo daquele monte, explica Sérgio Ávila, biólogo e paleontólogo da Universidade dos Açores, um dos vários investigadores que têm estudado as jazidas fósseis de Santa Maria.
Muitos daqueles animais fossilizaram. Com o ressurgimento da actividade vulcânica, há cerca de dois milhões de anos, a ilha emergiu novamente e elevou-se pelo menos 200 metros. “Talvez ainda o esteja a fazer.” Isto fez com que muitas jazidas estejam agora fora de água, sobretudo quando a maré baixa.
A Pedra-que-Pica formou-se a cerca de 50 metros de profundidade e terá resultado de uma grande tempestade, que fez acumular numa cova natural milhões de conchas, arrastadas para aquele local pela força das ondas. Além de conchas, os investigadores encontraram invertebrados de pequenas dimensões, dentes de peixes e de tubarões (não detectámos nenhum naquele puzzle desordenado).
Mas o que vemos agora pode ser apenas a ponta do icebergue. Segundo Sérgio Ávila, a jazida tem 2000 metros quadrados, “seis vezes menos do que a sua provável extensão inicial que rondaria, pelo menos, os 12 mil metros quadrados”. Não é fácil de imaginar. Mas uma coisa parece certa: se houver um paraíso na terra para os paleontólogos, deve ser algo parecido com a Pedra-que-Pica.