Nice, uma cidade com varinha de condão
A placa assinala com letras torneadas: “Fabrique de Baguettes Magiques”. No interior, David Mournard perde-se entre ferramentas, frascos, documentos secretos e ramos, troncos e galhos retorcidos, madeira mágica e um estreito corredor que nos conduz a um pátio, uma mini-floresta que parece habitada por duendes e druidas. Só há uma tradução possível: Fábrica de varinhas de condão. “Faço uma ou duas entre o restauro de móveis”, conta David. “Quando acontece algo bom digo que a culpa é delas”.
Era uma vez uma fábrica de varinhas de condão em Nice, uma cidade onde acontecem coisas boas — e a culpa nem sempre é delas —, que tem 300 hectares de parques e de jardins (e que decidiu ser “ cidade verde do Mediterrâneo”), que usufrui de uma costa com dez quilómetros (e cerca de 7,5 de uma sedutora praia de seixos que nos acompanha e que parece não nos querer deixar ir embora), que é a quinta cidade francesa mais populosa (350 mil habitantes; 50 por cento com menos de 40 anos), que tem a maior concentração de museus depois de Paris, que é a capital da Riviera francesa (o segundo destino turístico francês mais procurado, depois de Paris; e o segundo aeroporto francês mais utilizado, agora com um voo easyJet directamente de Lisboa), que é dinâmica e cosmopolita e que ao mesmo tempo sabe conservar os nomes antigos das ruas, os letreiros de madeira das lojas “mais antigas do mundo”, o interior (e, literalmente, o recheio) da Maison Auer, onde a rainha Vitória se abastecia de chocolates e de frutas cristalizadas, que tem um sotaque próprio (é “Nizza” para os italianos que governaram até 1860 e um agradável “nice” para os ingleses que há mais de um século transformaram a cidade na era vitoriana).
O pó de perlimpimpim de Nice está dos detalhes. Está na luz, naturalmente — estatisticamente são 300 dias de sol por ano. Está na inesgotável Promenade des Anglais, construída a partir de 1822 (Património da Humanidade para a UNESCO), que vive intensamente a vida dos seus habitantes e que nos atrai como um íman para as suas cadeiras azuis alinhadas em grupos e viradas para o mar de cores indescritíveis (que fascinou Henri Matisse), para uma multidão de seixos e para uma energia luminosa que contagia toda a cidade. Os ingredientes mágicos estão na vista da colina florida Le Château, onde Nice nasceu (nos parques e na cascata que lá se escondem). Estão nos enquadramentos e nas molduras de palmeiras. Estão na Casa Bestagno, loja de guarda-chuvas fundada em 1850 que parece ter sido montada, peça a peça, para parecer vintage. “No Inverno, os fundadores vinham todos os anos a pé do Lago Maggiore. E pelo caminho reparavam guarda-chuvas”, explica à Fugas Gino Bestagno, com um espaço na Rue de la Préfecture que parece retirado de uma casa de bonecas. Estão no delicioso mercado de flores e legumes e na imperdível feira de antiguidades — e na deliciosa banca de posters originais de publicidade junto à casa que já foi de Matisse.
Há algo em Nice que nos faz pensar num top. Top das cidades europeias que nos fazem ir e voltar vezes sem conta. Um, dois, três, diga-lá-outra-vez: Madrid, Paris, Berlim... E, na verdade, nenhuma delas tem um relógio municipal tão certeiro (um tiro de canhão todos os dias à hora certa, 12h00). Nenhuma delas exibe nas suas ruelas mais pitorescas tantas Vespa vintage por metro quadrado. E qualquer uma dela gostaria de se gabar de ter esta costa, a Baía dos Anjos — sem praias privativas como os vizinhos de Cannes, onde o comum mortal só pisa a areia quando o rei faz anos (“Por aqui, se as privatizassem, provocariam uma revolução”, dizem os orgulhosos habitantes de Nice).
Nice sabe estar. É uma cidade tradicional e original que partilha as virtudes de algumas capitais cosmopolitas, conseguindo esconder alguns dos defeitos dos seus “concorrentes”, mais cansados, desalinhados e poluídos.
O trabalho de Nice passa por ter 125 quilómetros de ciclovias (o projecto lés vélos blues, com um mapa disponível para iPhone, tem 175 estações separadas por apenas 300 metros), mais de 200 carros eléctricos (disponíveis em 70 locais) e uma linha de metro à superfície (usada por 110 mil passageiros por dia) com 8,7 quilómetros que revolucionou diversas zonas pedonais e que se faz (por 1,50 euros) na companhia de um museu a céu aberto composto pelas obras de 13 artistas contemporâneos (prevê-se que a segunda linha, que ligará o aeroporto ao centro da cidade, esteja pronta em 2017 e que chegue ao velho porto em 2019). O trabalho da cidade passa por um espaço nobre como La Promenade du Paillon, um parque urbano com cerca de 12 hectares no coração da cidade (que une Promenade des Anglais ao Museu de Arte Moderna e Contemporânea, MAMAC, que em Junho inaugura uma exposição de Julião Sarmento) com um sem número de espaços verdes e interactivos, diversões em materiais sustentáveis e refrescantes geringonças de água cronometradas. E esse trabalho reflecte-se nas zonas da cidade que se complementam e que se entrelaçam, esbatendo as suas fronteiras. Rodeado por edifícios ocre, o velho porto de Nice é um dos exemplos da requalificação e do rejuvenescimento. À vista desarmada (da colina Le Château), e palco para luxuosos iates e pequenos barcos de pesca, neste rectângulo perfeito coexiste a memória de espaços como o restaurante L’Ane Rouge, frequentado em tempos por Marc Chagall (cuja cozinha é hoje liderada pelo perfeccionista Michel Devillers), e também o futuro artístico promovido por galerias como a Maud Barral, instalada numa antiga oficina de motores de barcos e membro da Associação Botox’s, que existe para promover a arte contemporânea na Côte d’Azur.
O porto faz paredes meias com uma série de lojas de antiguidades e projectos de recuperação de objectos vintage. A palavra chave é Bonaparte (Napoleão morou aqui entre em 1794), uma zona a que os locais se habituaram a chamar de “pequeno Marais” (Nice orgulha-se de ser gay-friendly) e onde florescem todo o tipo de bares, gelatarias, lojas de roupa e adereços e pequenos negócios alternativos (como uma fábrica de varinhas de condão, mesmo junto à Place Garibaldi, a praça dos aperitivos; e pátios dedicados exclusivamente à venda de artigos em segunda mão). Isto sem esquecermos que a alguns passos de distância podemos mergulhar no mundo da alta costura e espreitar as tendências de cerca de 50 dos mais prestigiados rótulos (Galeries Lafayette, Louis Vuitton, Chanel, Hermès, Cartier, Armani...).
Sem perdermos de vista o bairro Bonaparte, esgueiramo-nos por entre a velha Nice, que um dia reuniu um concílio para decidir as cores das suas ruas estreitas (ganharam o ocre e o verde), das pequenas colinas de escadas, das vielas sombrias, dos pátios luminosos e de uma arquitectura que varia entre a arte barroca, os edifícios Belle Epoque, a Art Deco, a arquitectura da Sardenha e o estilo genovês.
Cada rua é identificada por duas placas: a de cima com o nome actual; a de baixo com o nome original e um pouco de história. Há letreiros pintados que sobrevivem nas fachadas do comércio tradicional, há nomes de influência italiana, há cheiros que invadem as ruas — o vinho da adega Caves Caprioglio, a torrefacção no Indiane, os raviolis Cappellettis, as tábuas sortidas do Lou Pilha Leva, o peixe fresco na Place Saint-François, o duelo de talhos na rua Pairoliere, a Merda de Cão (gnocchi com recheio de pesto e alho) do restaurante Acchiardo...
Outra das grandes tentações tem um rótulo. Chama-se cuisine niçoise e é servida em restaurantes com esta marca registada e acompanhada pelo slogan Cuisine Nissarde, le respect de la tradition. A culinária pretende reflectir a arte de saber viver que se respira na cidade e o uso de produtos regionais (a par do azeite e das ervas aromáticas). Para além disso, Nice é a única cidade da França a ter um vinhedo coberto por uma designação de origem controlada dentro das suas fronteiras (título conquistado em 1941) — nas encostas Bellet, uma das mais antigas variedades de uvas de França produz excelentes brancos, tintos e rosés, cuja reputação precede-os para além da região.
As varinhas de condão estão espalhadas pela costa, junto ao mar, no encalço de Festival de Cinema de Cannes, que fica a uns minutos de distância, das frescas impressões digitais de Pablo Picasso, de Chagall, de Miró e de Giacometti, algures entre Saint-Paul de Vence, Vallauris e Juan les Pins, que estão mesmo aqui ao lado, do Mónaco, de Itália...