A lancha atraca num cais tosco e improvisado junto à lagoa de água doce Chunyaxche (ou Ceibas, a árvore sagrada maia) para prosseguirmos o passeio, agora a pé e descalços sobre brasas. Exige-se um parêntesis imediato: municiem-se de chinelos se não querem cozinhar os pés para não se sentirem, como eu, a caminhar sobre a superfície solar. No percurso de cerca de dois quilómetros pela savana tropical, a maior parte inundada, absorvemos novos ensinamentos, agora sobre os mamíferos difíceis de avistar de dia. Bebemos os conhecimentos mas limitamo-nos a contemplar algumas espécies de aves e peixes de cores indescritíveis até nos depararmos com um encontro inesperado mas muito desejado. No outro lado do canal, protegido pelos mangues, um jovem crocodilo mexicano (crocodilus morelleti) — o crocodilo americano (acutus crocodilus) é a outra espécie que habita o lugar — repousa sobre as águas frescas e de uma transparência tal que permite ver a parte submersa do réptil que aguarda pela passagem das presas. O trilho termina num vetusto controlo maia de paredes caídas de nome Xlapak, remetendo-nos para o intenso comércio entre os maias e os povos da América Central.
O regresso ao Centro Ecológico faz-se por via marítima e com recurso a uma tecnologia natural: enfiados em coletes salva-vidas — também são disponibilizadas bóias —, a correnteza do canal transporta-nos, a um ritmo relaxante, pelos canais de água fresca em direcção ao mar aberto. Ainda assim, resiste no subconsciente geral a preocupação de um encontro com os crocodilos, pese, nesse capítulo, os registos serem imaculados.
Banhos e poemas
É tempo de repor energias. A desidratação enxuga-nos o corpo, tornando urgente a reposição dos líquidos perdidos. Peixe, salada regada com molho de semente de abóbora e sumo de frutas tropicais é o menu do dia degustado num balcão de vistas panorâmicas, da praia caribeña e da lagoa de água doce — duas cores distintas que juntas saciam os sentidos. Não se vislumbra vivalma neste mundo de ténue demanda, impedido de receber mais do que dezena e meia de barcos por dia — e eu só avistara o nosso! Não fossem os meus companheiros de viagem e sentir-me-ia assaltado por uma solidão grandiosa, de uma nobreza ímpar — tingida, com frequência, por um lilás clarinho. Uma cor que se mantém delicada e transparente nos céus da Riviera Maia, mesmo em dias de vento acentuado, como aquele que abraçara a região. Miguel acumula o naturalismo com a sensibilidade poética e histórica. Em voz baixa, lê-nos um poema dedicado à natureza escrito no século XV, pelo célebre filósofo-guerreiro-arquitecto-poeta Netzahualcóyotl. “Canto de Primavera/…resuena el canto/ los cascabeles se hacen oír/ a ellos responden/ nuestras sonajas floridas./ Derrama flores, alegra el canto./ Sobre las flores canta/el hermoso faisán,/ su canto despliega/ en el interior de las aguas./ A él responden/ variados pájaros rojos,/ el hermoso pájaro rojo/bellamente canta…”
Miguel tem sido um cruzado valente na luta pela proteção da fauna e flora de Sian Ka’an, fazendo do conhecimento a sua arma mais eficaz. A viagem prossegue para Sul, pela acidentada estrada 109, rumo a Boca Paila, que se alcança após passarmos por uma espécie de Arco do Triunfo, onde as águas da lagoa e do mar se casam de forma natural. Neste belo lugar, atravessado por uma ponte de madeira, deve observar-se, e pode fotografar-se, uma grande variedade de aves marinhas — albatrozes, pelicanos… —, sendo um local de nidificação por excelência. O veículo todo-o-terreno prossegue, aos solavancos, até ao fim da estrada desta imensa língua de terra, rodeada de mar por ambos os lados. E esse fim de mundo dá pelo nome de Punta Allen, um povoado piscatório disposto em quadrícula, à beira-praia instalado. Uma espécie de estação de serviço alimentar dos viajantes, antes de partirem à descoberta das maravilhas subaquáticas.