Fugas - Viagens

  • Um castanheiro com mais de 150 anos é um símbolo vivo frente à casa
    Um castanheiro com mais de 150 anos é um símbolo vivo frente à casa Jerry Lampen/Reuters
  • Anne Frank, Amesterdão, 1935
    Anne Frank, Amesterdão, 1935 Reuters/AnneFrank House
  • Um visitante observa páginas do diário de Anne na Casa Anne Frank
    Um visitante observa páginas do diário de Anne na Casa Anne Frank Cris Toala Olivares/Reuters
  • Casa Anne Frank
    Casa Anne Frank Evert Elzinga/AFP
  • Casa Anne Frank
    Casa Anne Frank Michael Kooren/Reuters

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Da casa de Anne Frank via-se um castanheiro

Reli o livro vinte anos depois com a minha irmã mais nova. Mas estava sobretudo preocupada com o modo como uma menina de 13 anos compreenderia aquelas páginas.

E agora tenho 42 anos, estou em Amesterdão com a minha sobrinha e aflige-me não encontrar uma maneira de tornar compreensível para uma criança de dez anos a enormidade que ali se passou.

Antes mesmo de chegar à cidade comentei o assunto com os pais dela e perguntei-me qual seria a melhor abordagem. Não só para a preparar para a prostituição nas montras (que não se confina ao Red Light District), mas para a casa de Anne Frank. Sobretudo para a casa de Anne Frank. Isto sim, pornografia. De repente, postas as coisas em dois pratos de uma balança que nunca será a mesma balança, apercebi-me de que há coisas que não conseguimos organizar, que não cabem em nenhuma categoria, e que dizer que moralmente é repugnante, sub-humano, inumano, todas as formas de negação do humano, não chega. Talvez nenhuma palavra chegue. A palavra é do domínio do humano. O que se passou no Holocausto não tem palavra que o diga suficientemente. Faltam as palavras ao humano para explicar o que está para lá do humano.

Penso que uma das razões por que me impressionou tanto visitar a casa de Anne Frank foi o facto de a visitar com uma menina pouco mais nova do que Anne Frank. Ter dez anos não é mesmo que ter treze. Porém, a cara de Anne é a cara de uma menina pequena, com um gancho a segurar o cabelo, o olhar luminoso e crédulo. Como seria a cara de Anne depois de dois anos de anexo? Ver-se-ia a devastação? A amargura? Porque as fotografias que temos são anteriores e só nos dizem da menina. Entretanto, no anexo, apareceu-lhe o período, tornou-se mulherzinha. Substituiu imagens de artistas de cinema por reproduções de Miguel Ângelo ou Da Vinci na parede do quarto. E, sabe-se lá como, continuou a alimentar sonhos, a fazer planos para depois da guerra. Mais do que tudo: continuou a acreditar na bondade do homem.

Talvez a sua cara não tenha mudado tanto assim. Tanto além das mudanças que sempre ocorrem quando o mundo muda de lugar e somos adolescentes.

Estou com a minha sobrinha e os pais dela numa fila para entrar na casa de Anne Frank. Fomos quatro entre tantos, pacientes numa fila de horas. Tantos a querer compreender alguma coisa e, sobretudo, a prestar homenagem a Anne, e nela a milhões de judeus mortos na Segunda Guerra. E isso é talvez a única coisa que podemos explicar a uma criança de dez anos: estar ali é uma forma de recusar a discriminação e o horror, de honrar a memória, de não esquecer que uma coisa chamada Holocausto (“O que é Holocausto?”) aconteceu quando os nossos pais e avós já eram vivos. Tão perto de nós.

A casa de Anne Frank fica virada para um canal, ao lado de uma igreja. Ali havia um castanheiro de que Anne gostava. Era uma das poucas manifestações de vida que podia ver a partir do anexo. A cidade levantou-se em 2007 quando o quiseram abater. A árvore estava doente, a reabilitação fez-se. Até que em 2010 se partiu, como se fosse um galho frágil e não uma árvore de 150 anos, depois de uma noite de chuva e vento.

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