Dir-se-ia um pedaço de mundo tranquilo. Apesar de um cerco cada vez mais apertado. Até à asfixia.
O nó começou a apertar em 1933, o ano da subida de Hitler ao poder. A família Frank emigra de Frankfurt para Amesterdão. Anne tinha quatro anos. Depois de 1940, uma série de decretos restringia “severamente” (advérbio de Anne) a vida de todos os dias. “Os judeus tinham de usar uma estrela amarela”, que hoje se vê, na casa. Os judeus estavam proibidos de andar de eléctrico, carro, bicicleta. Os judeus estavam proibidos de se sentar nos jardins, cinemas e teatros. Os judeus eram obrigados a fazer compras entre as três e as cinco e impedidos de andar na rua entre as oito da noite e as seis da manhã.
Na página quase completa em que explica tudo o que os judeus não podiam fazer, Anne começa todas as frases por “os judeus”. O que é sublinhado: tudo lhes estava vedado por serem judeus. A razão da discriminação era essa.
Os judeus eram proibidos de quase tudo. De certa maneira, estavam proibidos de existir, ainda que não estivessem completamente privados da liberdade.
Mas não era ainda o anexo.
Esse foi o quadro das suas vidas. Até não restar um sopro que possibilita a vida cá fora. O impulso derradeiro aconteceu quando a irmã de Anne, Margot, recebeu uma convocação das SS. Margot tinha 16 anos, mais três do que Anne. Representou o fim da linha de fuga.
Os pais de Anne, que preparavam a ida para um esconderijo havia alguns meses, aceleraram o processo. Só na manhã em que abandonaram a sua casa, e a deixaram como se tivessem saído à pressa, e rumaram em direcção ao esconderijo com camadas de roupas e tanto quanto puderam levar, ainda de madrugada, Anne soube que o esconderijo ficava no edifício onde o pai tinha a empresa. Não longe da sua geografia de sempre. Poucos dias tinham passado entre a convocatória das SS e a nova vida secreta.
Abro um parêntesis para explicar que nunca percebi o que era o anexo até estar no anexo. Quando li o Diário de Anne Frank tinha onze para doze anos e terminava o sexto ano. Imaginava o anexo como um espaço contíguo ao armazém, mas não conseguia visualizar o que Anne descrevia com algum pormenor no seu diário. Nem consegui compreender, obviamente, a que é que correspondia viver naquela clausura, sob aquela ameaça. Havia muitas coisas em que a vida de Anne se parecia com a minha. Atritos com a mãe ou a irmã, um apaixonado chamado Peter, o sino da igreja que se ouvia ao fundo. As pessoas cobiçosas ou pouco solidárias, que Anne conheceu nos van Pels e que eu encontrava em alguns adultos da minha vida. Os sonhos do que faria quando saísse dali/ quando crescesse.
O mundo é um lugar de doidos
Hoje parece-me absurdo estabelecer um qualquer paralelismo entre aquilo que Anne sentiu e descreveu e aquilo que eu senti. Mas ela era uma menina mais ou menos da minha idade que conseguia (o milagre, percebo-o hoje) de tactear a vida e de encontrar uma certa normalidade no mundo e na aberração em que vivia. Era com a normalidade que eu me identificava e com a linguagem silenciosa e salvadora que o diário representava. Foi com certeza por causa dela que tive um diário a quem chamei Kitty. Mas nunca me entreguei a ele como Anne, que escreveu no diário em jeito de epígrafe: “Espero poder confiar-te tudo, como nunca pude confiar em ninguém, e espero que venhas a ser uma grande fonte de conforto e apoio”.