Fugas - Viagens

Glauco Umbelino (flickr.com/geoglauco)

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O artista limitado que produziu obra de uma beleza sem limites

e esse tropel de desejos

e essa ânsia de ir para o céu

e de ficar mais na terra;

Era uma vez um Aleijadinho,

não tinha dedo, não tinha mão,

raiva e cinzel lá isso tinha,

era uma vez um Aleijadinho,

era uma vez muitas igrejas

com muitos paraísos e muitos infernos,

era uma vez São João, Ouro Preto, Sabará, Congonhas,

era uma vez muitas cidades

e um Aleijadinho era uma vez

 

Era uma vez

De acordo com a certidão de óbito, arquivada na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Aleijadinho morreu com a idade de 76 anos, no dia 18 de Novembro de 1814, mas não é bem certa a data do seu nascimento: para alguns estudiosos terá nascido a 29 de Agosto de 1730, uma tese baseada na sua certidão de baptismo; para outros, oito anos mais tarde, de acordo com o registo de óbito que consta do livro n.º 5, encontrado na igreja matriz de Antônio Dias, em Ouro Preto, onde costumava assistir sempre à missa (era profundamente religioso), carregado numa cadeira ou ao ombro de um escravo.

Filho do arquitecto português Manuel Francisco da Costa Lisboa e de uma escrava, Isabel – apenas Isabel e libertada no dia do baptismo da criança –, Aleijadinho foi Antônio Francisco Lisboa antes de ser Aleijadinho, uma alcunha que resulta da sua grave enfermidade, cujos primeiros sintomas surgiram quando o escultor rondava já os 40 anos.

Quando se olha para a obra de Aleijadinho há algo de poético e harmonioso que aproxima o homem e a arte, percebe-se que na perfeição de cada trabalho estava o seu sentido de vida, a sua expressão máxima. Mas esta estética está longe de ter paralelo num mulato que sempre foi retratado como um exemplo de feiura, com as suas orelhas grandes, quase sem pescoço, uma testa larga, atarracado – e tantos outros objectivos sem lugar no livro da beleza.

Rodrigo José Ferreira Bretas, o seu primeiro biógrafo, nascido no ano da morte do artista, pinta um quadro hediondo e aterrador quando, em 1858, publica num jornal de Vila Rica, a actual Ouro Preto (em 2013 foi reproduzido num livro), traços do percurso de Aleijadinho, já depois de afectado pela doença – até aí viveu no mais completo anonimato.

“As pálpebras inflamaram-se e, permanecendo nesse estado, oferecia à vista sua parte interior, perdeu quase todos os dentes e a boca entortou-se, como sucede frequentemente ao estuporado; o queixo e o lábio inferior abateram-se um pouco, o que lhe emprestou uma expressão sinistra e de ferocidade, que chegava mesmo a assustar quem o enfrentasse inopinadamente. Perdeu todos os dedos dos pés, o que resultou não poder andar, senão de joelhos; os dedos das mãos atrofiaram-se e curvaram-se, chegando alguns a cair, restando nas mãos os dedos polegares e os índices (indicadores).”

Em Minas Gerais, um pouco por todo o lado, de Ouro Preto a Congonhas do Campo, de Tiradentes a São João del Rei, corre de boca em boca uma lenda (difícil definir a fronteira entre realidade e ficção) que atesta a fealdade de uma das maiores figuras do barroco. Ao que consta, Antônio Francisco Lisboa terá comprado um preto boçal conhecido como Januário e este logo decidiu pôr termo à vida, servindo-se de uma navalha para o efeito.

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