Fugas - Viagens

Glauco Umbelino (flickr.com/geoglauco)

O artista limitado que produziu obra de uma beleza sem limites

Por Sousa Ribeiro

Aleijadinho, mestre do barroco, deixou um legado ímpar em Minas Gerais. Viagem pelo seu percurso no momento em que se celebra o bicentenário sobre a sua morte.

Januário, um escravo, tentou suicidar-se porque achava preferível morrer a trabalhar para um homem tão feio. Falamos de Aleijadinho, mestre do barroco mineiro, o homem que deixou um legado ímpar em Minas Gerais, especialmente em Congonhas do Campo, um conjunto de estátuas que Germain Bazin definiu como “a última aparição de Deus evocada pela mão do homem”. 

- Como é linda a minha cidade!

Na semipenumbra do restaurante, quase órfão de clientes, a inércia dá lugar, de repente, a um ou outro movimento mais enérgico, corpos correndo para a porta que logo se transformam em silhuetas que enchem a moldura. À distância, já se ouve o ruído de passos e já se perscruta uma luz ténue que se espalha pela calçada, até agora embebida em silêncio e envolta nas trevas da noite que acabara de tombar.

O murmúrio aumenta de tom, como uma vaga desfazendo-se na praia, a chama sobe e baila nos rostos fechados dos fiéis, a procissão passa, lenta como os ponteiros do relógio por estes lados, e por momentos olho sem ver, desenhando no cérebro fragmentos de outras manifestações de fé, procissões diurnas calcorreando outras pedras lisas, as melhores cobertas de cama, carregadas de cheiro a naftalina e usadas apenas em dias festivos, esvoaçando ao vento nos seus múltiplos padrões coloridos sobre varandas de granito que se debruçavam para a rua.

As palavras chegam-lhe primeiro à boca, nem sequer dão trabalho aos neurónios, exageradas ou não, manifestam uma opinião e, ao mesmo tempo, como o sorriso dócil e pueril deixa entender, um carinho e um orgulho muito grandes pela cidade que a viu nascer e crescer e provavelmente morrer sem se aventurar por outras.

- Não acha?

A minha expressão silenciosa, vagueando na dúvida, conduz à pergunta de Larissa Dias, que fica sem resposta por falta de dados objectivos – o crepúsculo avançava apressado quando, nesse mesmo dia, uma Sexta-Feira Santa, cheguei à cidade dos profetas, feliz por não ter apanhado um avião para Congonhas, aeroporto próximo de São Paulo, mas um autocarro tendo como destino final Belo Horizonte que me deixou numa estação de serviço às portas de Congonhas do Campo, município de Minas Gerais, provavelmente o estado que, no seu conjunto, melhor expressa a herança arquitectónica do país colonizador.

Uma lua tímida, adquirindo a sua forma redonda, recorta-se no céu escuro; fito-a da minha janela, nada mais me é dado a ver na noite serena, mas sei que os profetas estão ali bem perto, talvez conspirando, contando segredos de um tempo imemorial. Sob a luz débil do candeeiro, num quarto com odores que não são de hoje mas de há muitos anos, ainda assim agradáveis, percorro com o indicador as linhas escritas por Carlos Drummond de Andrade sobre Aleijadinho, o mestre do barroco que se cruzou com a morte há 200 anos – completam-se na próxima terça-feira - mas que deixou um património que está bem vivo e irá perdurar durante muitos mais na memória dos homens.

Esse mulato de génio

lavrou na pedra-sabão

todos os nossos pecados,

as nossas luxúrias todas,

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