O xisto é mais duro. Os habitantes não espreitam junto às metas e as janelas mantêm-se cerradas. Uns lembram que é noite — “estão a dormir” ; outros exclamam que as aldeias estão desabitadas; outros, ainda, contam que há quem retire as fitas sinalizadoras dos trilhos — “acham que é uma invasão do espaço deles”. “São ariscos”, comentam alguns voluntários da prova, enquanto bebem minis e provam o chouriço assado, referindo-se sobretudo aos habitantes do Catarredor, “a aldeia dos hippies”, como lhe chamam, e a única a rejeitar a integração na rede turística das Aldeias do Xisto.
Uma linha de luzes coordenadas, como lanternas em cabeças de mineiro, sobe entre o breu e a bruma desde o Ameal até ao parque eólico. Para lá de um galho ou outro que quebra à força do vento, restam apenas o som narcótico de gigantes pás metálicas sobre as nossas cabeças e a respiração húmida de um ou outro coração ofegante.
O primeiro ponto de abastecimento dos atletas fica no Talasnal, um lugar equilibrado em encostas, a norte da ribeira de São João, onde já ninguém mora em permanência. Os últimos habitantes, a Ti Lena e o Ti Manel, partiram em 1981, mas a sua imagem permanece gravada na memória de xisto da aldeia.
Ainda que não haja moradores, não faltam lugares para provar chanfana e talaniscos — como o restaurante Ti’ Lena; para alargar o conhecimento — como a Lojinha da Ti Filipa ou o Retalhinho; e para dormir — como as casas da Urze e do Forno. Mas é na casa-abrigo que os corredores compõem o estômago. “Muitas vezes não temos fome, até porque em altitude sente-se muito enjoo, mas temos de comer. É muito importante para aguentar a prova”, ensina Ester Alves, 33 anos (vencedora, entre as mulheres, do UTAX).
A banca enche-se de bananas, tostas com Nutella, pão com chouriço, laranjas, batatas fritas, amendoins, marmelada, coca-cola, bebida isotónica e água. À 1h43, os atletas dão os bons dias a quem passa, com as pernas já negras de terra e os pés escorregadios nas escadas de xisto. Mas a respiração ainda dá notas de passeio tranquilo.
Os muitos risos e mãos afáveis nas costas não são estranhos à atmosfera do trail. A grande maioria dos praticantes defende que a verdadeira razão da modalidade é o convívio e não o relógio. No entanto, no plano da organização de provas, a atitude “a minha prova é mais difícil e exigente do que a tua”, que tem servido para captar adeptos, como observa o presidente da ATRP, levanta alguma preocupação.
Daí a “necessidade urgente de regulamentar e supervisionar os eventos abertos à população” descrita por Jorge Vieira, da FPA, para quem “o desporto, só por si, não é saudável nem educativo; depende sobretudo da forma como é praticado”. O responsável frisa que “não são os eventos desportivos que dão saúde, mas sim o trabalho de preparação”. E daí pousa a ideia: a montanha não será para desbravar, mas para ir desbravando.
Entrevista
Gary David, sociólogo e runner: “Há uma oportunidade de ecoturismo no trail running”
Gary David corre maratonas desde 1994, participou algumas vezes no Ironman (triatlo de longas distâncias que envolve 3,8km de natação, 180km de ciclismo e 42,195 km de corrida), fez muitos ultra-trails e pratica ciclismo. É director do Departamento de Sociologia da Universidade de Bentley, no Massachusetts, Estados Unidos, e co-autor do artigo The Spirit of the Trail: Culture, Popularity and Prize Money in Ultramarathoning, no jornal Fast Capitalism. Acredita que no trail há “uma experiência de reconexão com a natureza”.