Na capela funerária, do outro lado do pátio, convivem o amor e a morte: na frontaria refulgem figuras de quadros eróticos do Ramayana, enquanto lá dentro se alinham dezenas de estátuas de Buda em hieráticas poses à volta da urna e do veículo funerário utilizado na cremação dos últimos monarcas do Laos. Empinado sobre uma escada, um monge retoca com um pequeno pincel os ornamentos dourados de uma coluna de madeira. Será que fazia parte do grupo de monges jovens que na véspera se entretinha, com festivo bulício e num intervalo dos afazeres ascetas, a arremessar pedras para o Nam Khan?
Phou Sii, o mirante metafísico
Diante do Museu do Palácio Real há um monte, o Phou Sii. E há uma escadaria que nos leva lá acima, numa subida fatigante, por entre estátuas de Buda e de outras figuras das narrativas budistas. O Phou Sii é a única elevação na península e o relevo mais próximo, uma fileira de cerros curvos e baixos, fica na outra margem do Mekong, o que faz com que nada se interponha entre o olhar e o milagre da cidade: entre o casario lá em baixo, só a muito custo se pode descobrir uma nota destoante, seja volume, forma ou cor. A cidade surge admiravelmente acomodada na estreita península e parece estar ali desde o princípio dos tempos (ou, pelo menos, desde a passagem de Buda por aquelas paragens), realizando o feliz destino que o santo homem lhe terá profetizado, com o sorriso que a lenda consagrou.
A vista, ainda: o Mekong, alongando-se para montante e para jusante, as águas lentas, da cor de um barro claro, levemente translúcido, vindas das vertentes longínquas e inacessíveis dos Himalaias e sem pressa para os mais de mil quilómetros que ainda faltam até ao delta no Mar da China; a serpentina do Nam Khan abraçando a península, atravessado pelas pontes de bambu em baloiço sobre a água até que a monção venha e as arraste; as montanhas, ora verdes, ora azuis, rompendo o frágil tecido das neblinas matinais.
O Phou Sii é um mirante, sim, talvez mais metafísico do que turístico, pois a verdade da lenda diz outras cousas que, de tão antigas e de outro tempo, custa ao compreender contemporâneo ouvi-las e delas tomar entendimento. E como saberemos, alguma vez, se os que nelas crêem não terão reencontrado uma sorte de iluminação que, diz a sabedoria budista, se reitera vida após vida? Jamais saberemos, porventura. Ou, quiçá, por (des)ventura. O que agora nos cabe saber é este tanto que aos crentes faz parecer modesto o panorama: ali perto do mirante, no topo do Phou Sii, Buda esteve sentado, talvez meditando, talvez em silêncio sorrindo e adivinhando a vindoura fortuna do lugar, a de ser berço de uma cidade-relíquia.
A história da visita de Buda acrescenta um sentido espiritual a Luang Prabang e possui a verdade transcendente da lenda, matéria tão real e tão viva como a cor de açafrão das vestes das centenas de monges que pouco antes do amanhecer percorrem as ruas, lá em baixo, recolhendo dádivas e reiniciando todos os dias o mesmo ciclo. Uma história que um dia também se apagará — afinal, a natureza do mundo é a impermanência. Por isso foi que se desfizeram impérios e nos ficaram estes montes e estes rios.