Exausto, de certa forma frustrado por ter chegado a horas tardias, abandonei a rua já quase deserta e deixei que os meus passos me conduzissem até ao hotel, iluminado pelas luzes trémulas dos candeeiros que se espalhavam para lá dos passeios, desenhando sombras que envolviam a noite numa atmosfera fantasmagórica. Mesmo cansado, decidi continuar a leitura interrompida durante a tarde, quando o cenário que entrava emoldurado por uma das janelas da carruagem, encimado por nuvens cor de chumbo, me parecia mais apelativo. Olhei o título do livro, repousando sobre o edredão da cama, e fui passando os olhos pelas linhas que se aproximavam do seu final, como um comboio prestes a chegar ao seu destino, até me deter logo após uma frase forte – “Porque tenho medo de ser livre”.
“Do meu quarto de Graz, vê-se a torre do relógio sobre o monte do castelo”, escreve Herta Müller, em Tudo o que eu tenho trago comigo, um livro que a romena de origem alemã deveria ter publicado em conjunto com Oskar Pastior, deportado de uma das muitas aldeias que recordam o passado fascista da Roménia e falecido em 2006, antes de se materializar a ambição de ambos. Graz, a despeito de ocupar o segundo lugar entre as cidades austríacas com mais habitantes (270 mil), logo a seguir a Viena, está longe de provocar no turista a mesma atracção que produzem, pela sua força mais mediática, a capital ou Salzburgo ou mesmo Innsbruck, tão-pouco inspira escritores ou homens das artes como estas, por onde se caminha sob o peso da música e dos nomes do passado que nem o passo apressado do homem do presente ousa esquecer.
Essa incapacidade para rivalizar e a coincidência na escolha da leitura lançaram-me, de súbito, para a janela, como quem pretende, num breve segundo, redefinir a imagem de Graz para o turista comum. Mas uma chuva miudinha, teimosa, pouco ou nada deixava ver, gotículas que vão deslizando pelo vidro, tornando ainda mais pálidas as luzes que se avistam e alimentando o enigma até que um novo dia nasça. Leio mais um pouco, umas escassas linhas, mas não chego ao fim: “De qualquer forma, vou continuar a morar aqui, e a rua também não vai a lado nenhum e o Verão ainda está para durar. Eu tenho tempo e fico à espera.”
No meu caso, porque é Inverno.
O símbolo dos namorados
A manhã levanta-se na companhia de um sol preguiçoso que, uma vez por outra, se insinua por entre o cortinado de motivos geométricos; a janela deixa agora ver muito mais do que por entre a chuva e as trevas, funcionando como esboço de uma cidade que os austríacos baptizaram carinhosamente como a “Rainha dos Corações”, como alguém que se ama em segredo, uma amante, sedutora ao ponto de cinzelar o seu carácter na alma dos visitantes. Património Mundial da UNESCO desde finais do século passado e Capital Cultural da Europa em 2003, Graz tem na parte antiga a sua verdadeira essência, um núcleo histórico dominado pela Schlossberg, a colina que se projecta como uma espécie de vigilante sobre os harmoniosos telhados e que em tempos de antanho estava rodeada por uma muralha. Hoje, tantos anos depois, nada mais resta do que um conjunto de ruínas que alberga uma série de actividades ao ar livre (há também um pequeno museu com uma bela panorâmica desde o terraço) mas a subida até à Torre do Relógio, no extremo mais a sul da Schlossberg e símbolo da cidade e dos namorados, é um desafio que nenhum viandante deve perder, com a vantagem de gozar de três opções: um teleférico que foi inaugurado em 1894, um elevador panorâmico que parte da Schlossbergplatz ou a pé, seguramente a melhor opção, ao longo de uma escadaria escarpada que foi escavada nas rochas durante a I Guerra Mundial, um percurso lento através do perfil acidentado do relevo mas que propicia imagens sublimes do centro histórico.