Fugas - Viagens

  • FOTOS: HANS LOZZA

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O parque que recusa a mão do homem

Desde Guarda, partem vários trilhos, um deles dedicado ao herói da banda desenhada de Selina Chönz e de Alois Carigiet, outro para norte, ao longo de oito quilómetros, até um lugar no sopé do pico Pizz Buin (uma forma fácil de descobrir de onde vem, afinal, o nome do protector solar), imponente a mais de 3300 metros de altitude, pelo meio de paisagens que não deixam o viandante respirar, quase sempre estéreis da presença humana, tão vivas no seu silêncio apenas quebrado por um silvo de um pássaro ou pela brisa suave atormentando a vegetação que resplandece sob os raios do sol que se ergue no céu de um azul forte.

A estrada, rasgando cenários imensamente verdes, ainda me leva até Bos-cha e, logo depois, feito um desvio, até Ardez, com a sua torre medieval em ruínas, e Ftan, onde sigo o asfalto serpenteante que não tarda em deixar-me numa das maiores atracções de todo o vale, em Scuol, a pouco mais de 1000 metros de altitude. Famosa pelas suas águas termais, a aldeia começa a seduzir à distância, quando deixa ver a sua igreja pintada de branco, com a sua torre sineira em pedra, erguendo-se no alto da colina, como vigilante do rio que corre mais abaixo, o apressado Inn, contornando todos os obstáculos desde a sua nascente, nos Alpes de Graubünden, bem próximo do Passe de Maloja, e ao longo de mais de 3000 quilómetros.

O rio também dá nome ao extenso vale talhado em duas secções, de um lado o Oberengadin, o Alto Engadine, dominado pela ostentação que prevalece em estâncias de esqui como St. Moritz e arredores e, do outro, o Unterengadin, a parte baixa, estendendo-se desde Zernez até Martina, ao longo da fronteira austríaca, onde se situa o Parque Nacional Suíço, o único a justificar semelhante estatuto em todo o país.

Tudo se transforma

Ainda com as imagens de Scuol, com as suas casas pintadas com diferentes motivos, muitas delas antigas de séculos mas restauradas nas últimas décadas, bem gravadas na memória, chego à entrada que me dá acesso ao parque que festeja o seu centenário este 2014, uma área que se espraia por mais de 170 km2. Deixado para trás o edifício onde funciona o centro de visitantes, destacando-se na paisagem no seu branco ofuscante e a quem, visto do exterior, ninguém atribuiu um orçamento que atingiu os 14 milhões de francos suíços (qualquer coisa como 11.600 milhões de euros), a natureza abre-se em todo o esplendor a quem se aventura pelos 80 quilómetros de trilhos (e ninguém se pode afastar deles) que testemunham a serenidade de um lugar onde qualquer um se sente pequeno perante a magnificência do quadro que se pinta para a frente, para os lados e para trás. Os picos permanecem nevados, os caminhos rompem o verde, os cantos dos pássaros soam tão harmoniosos e melodiosos que dão ares de um concerto ao ar-livre - estando neste lugar ninguém preenche o imaginário com um outro, a reserva abraça-nos com a sua grandeza baseada na simplicidade, como uma onda da qual não conseguimos desprender o olhar.

“A interferência humana está absolutamente excluída em toda a região. Caçar, pescar, adubar, pastorear e ceifar são actividades estritamente proibidas. Nem uma flor ou um ramo podem ser colhidos, nenhum animal pode ser morto, nenhuma pedra pode ser removida; mesmo as árvores derrubadas devem permanecer intocáveis. Desta forma, está assegurada a absoluta protecção ao cenário, às plantas e aos animais; a Natureza, sozinha, domina”, escreveu, nove anos após a abertura oficial do parque, Carl Schröter, dando eco a um sentimento colectivo que manifestava uma preocupação moral mas, ao mesmo tempo, científica. Se, por um lado, se impunha travar a industrialização, por outro, sentia-se a necessidade urgente de criar um extenso laboratório no exterior onde todo o processo natural decorresse sem a participação do ser humano, “uma experiência grandiosa para criar a natureza selvagem”, como a definiram Carl Schröter e os seus companheiros, orgulhosos por retribuírem à reserva a sua essência mais primitiva, baseada no processo de sucessão retrógrada que, gradualmente, conduz ao restabelecimento da antiga biocenose que existia antes de o homem civilizado ter posto o pé nos Alpes. 

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