Fugas - Viagens

  • FOTOS: HANS LOZZA

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O parque que recusa a mão do homem

Gastronomia e vinhos

Com tempo para oferecer ao tempo, não se revela tarefa impossível aproximar-se de um dos veados vermelhos que podem ser avistados na área do parque. Mas, com muito mais de sorte (ou azar), a sua caminhada corre o risco de se cruzar, subitamente, com um urso, um descendente dos ursos castanhos da Eslovénia, um familiar daquele que, vindo de Itália, fez uma incursão em território suíço em 2005, juntando-se a uma colónia de lobos a viver no cantão desde 2002. O interesse provocado junto dos turistas perante tão rara visão (mais de 15 anos sem que fosse avistado um único exemplar) motivou a partida do urso para as montanhas italianas, antes de um regresso, nesse mesmo ano, mas em Setembro, marcado pela morte de mais de uma dúzia de ovelhas para satisfazer o seu apetite. 

Nuvens, como farrapos de algodão, roçam os picos, a água, cheia de pressa e impossível de se deter na sua caminhada louca, corre formando os seus próprios sulcos, projecta-se, ameaçadora, até repousar em paz no vale profundo, inundado pela luz do meio da manhã, já sem a pureza das horas que se seguiram ao nascer do sol. Tanta energia positiva estimula o apetite, o cantão de Graubünden, bem como o vizinho Grissons, revela outra faceta, a importância da sua gastronomia – é curioso verificar, desde que não opte por uma visita fugaz à região, como cada uma das três línguas faladas (o romanche, o alemão e o italiano – e é interessante como, sendo o alemão a língua oficial, é um dos melhores lugares para se escutar o romanche -) exerceram forte influência sobre a cozinha local. Do enclave italiano a sul, para lá do Passe de Bernina, chega o pizzoccheri, uma massa confeccionada com batatas, couve, manteiga e queijo regional que não desilude o caminheiro; para sabores mais romanches, nada melhor do que testar maluns ou capuns, cozinhados sempre com os vegetais da época. Mas a melhor de todas as experiências – e vale apenas a minha como testemunho – passa por investir numa viagem que, sem ser exclusivamente gastronómica, o pode levar a sentir o pulsar das margens do Reno, ao longo de vinhas onde se produzem vinhos de grande qualidade, tanto tintos como brancos, sem deixar de observar o peso da natureza, como se o carregasse sempre aos ombros. Se, numa dessas provas, paga ou manifestação espontânea de um qualquer anfitrião, tiver a oportunidade de testar a bündnerfleisch, um tipo de carne que seca ao ar livre, antes de se entregar aos queijos produzidos localmente, não tem, com um copo na mão, muitas razões para se arrepender de um dia ter viajado para um território tão remoto.

Não os vejo todos, muitos deles passam fugazes pelo meu raio de visão, rápidos de mais para serem admirados, outras vezes deixam-se ficar indolentes, atentos e aparentemente sem receio do visitante, mas os números e observações recentes, um pouco por toda a área, mostram a existência de algumas espécies raramente vistas noutros quadrantes – marmotas, camurças, cabras e veados passeiam-se pela região, estes últimos na ordem dos 250 e 1800, respectivamente. Extinto completamente na Suíça durante muitos anos, o abutre-barbudo foi reintroduzido com grande sucesso em 1991 e é hoje a verdadeira estrela do parque – em tempos idos eram caçados pela população local, com receio de que as aves matassem as suas ovelhas e os seus carneiros e rapinassem mesmo os seus bebés, de acordo com uma lenda. Na verdade, como todos os abutres, esta espécie alimenta-se apenas de animais mortos e revela grande dificuldade em mastigar os ossos, usando uma técnica especial de os lançar desde as alturas contra as rochas. É também nas alturas que se pode avistar, de quando em vez, a águia dourada, a maior ave de rapina existente no país. Um e outro, abutre-barbudo e águia dourada, podem ser facilmente confundidos nos céus do parque; para quem se interessa pela observação de aves, um detalhe ajuda a estabelecer a diferença: o abutre-barbudo tem uma cauda em forma de seta e a da águia dourada é rectangular.   

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