Fugas - Viagens

Hampi, a História da Índia ao vivo e a cores

Por Humberto Lopes (texto e fotos)

Em Hampi, uma das mais impressivas paisagens arqueológicas do subcontinente indiano, floresceu a capital do último dos impérios hindus, que acabou vencido pelas invasões islâmicas vindas do Norte. Hoje, numa imensa área classificada pela UNESCO sobrevivem centenas de templos e estruturas urbanas de uma cidade que algumas crónicas afirmam ter chegado a reunir meio milhão de habitantes.

O rio Tungabhadra é o maior afluente do Krishna, um dos rios sagrados da Índia, e é mencionado nas páginas do Ramayana. Na margem norte, no cimo de uma colina, um pequeno templo assinala o lugar de nascimento do deus-macaco Hanuman, encarnação de Shiva, de acordo com os milenares textos sagrados do hinduísmo. É preciso trepar uma meia hora para vencer os quase mil degraus até ao topo. Lá de cima avista-se o Tungabhadra deslizando em demoradas curvas, entre a penedia de granito a arder ao sol, e ao fundo, a oriente, a passagem para a aldeia de Anegundhi. Onde não se planta penedia vemos arrozais dourados e camponeses atarefados com a colheita. Na outra margem está o templo Vittala e diante dele uma longa alameda rodeada por rítmicas arcadas de pedra e por uma série de bizarras formações rochosas. Ali funcionava um dos vários bazares da antiga capital do reino de Vijayanagar, que as crónicas descrevem como lugar de grande azáfama comercial e agrícola e onde acorriam muitos estrangeiros a mercar.

Para entender o que levou à criação desta extraordinária paisagem arqueológica, que a UNESCO elevou à condição de Património Mundial, não basta ao viajante entreter-se com as vistas. É preciso um olhar sobre momentos cruciais da História do subcontinente, os mesmos, sem dúvida, essenciais também à compreensão do caleidoscópio cultural e religioso da Índia. Até à constituição de Vijayanagar, o sul do subcontinente indiano acolhia antigos reinos hindus de pequena dimensão. Foi a ameaça do avanço islâmico a partir do norte, agravada na primeira metade do século XIV, que determinou uma aliança entre alguns desses reinos. Um deles tinha sede na margem do Tungabhadra, no local onde hoje se encontra o povoado rural de Anegundhi, e a escolha do local para a capital do nascente império tinha razões visíveis — a morfologia do terreno, dominada pela presença de maciços graníticos, úteis na defesa contra possíveis atacantes, e a vizinhança do rio, que, além de constituir uma barreira física, oferecia as suas águas aos agricultores. O império de Vijayanagar (que significa “A Cidade da Vitória”) haveria de durar quase 250 anos, até à segunda metade do século XVI, e estender-se-ia desde os planaltos do Decão até ao Cabo Comorim. Ironicamente, acabou por sucumbir às mãos do mesmo factor que determinou a sua criação, a pressão dos sultanatos islâmicos. Segundo alguns historiadores, o fim de Vijayanagar teve uma influência, ainda que indirecta, sobre os negócios lusitanos na Índia, acelerando a sua ruína. As relações de Portugal com o reino de Vijayanagar, em cujo litoral se estabeleceram feitorias portuguesas, foram marcadas, aliás, por ocasionais alianças e acordos, e não eram incomuns as jornadas de viajantes lusitanos por terras do último grande império hindu.

Hampi Bazaar

A aldeia de Kamalapuram, a sul de Hampi, pode ser um dos pontos de acesso ao recinto. Está a dois passos do Centro Real e de trechos da antiga muralha, e acolhe o museu arqueológico, mas o povoado de Hampi Bazaar é bem mais interessante como base para exploração do que resta da capital de Vijayanagar — fica à beira do rio, mais ou menos equidistante de Anegundhi e do Centro Real. É um pequeníssimo aglomerado de casas — umas dezenas, muitas delas transformadas em guest houses e restaurantes — e vive paredes-meias com o grande templo de Virupaksha, importante centro de peregrinação hindu nesta parcela do Karnataka.

Ainda que o turismo se tenha convertido numa sensível fonte de receitas para a população, a par da agricultura, é a peregrinação diária de fiéis hindus e cenas da vida local que mais peso têm na atmosfera de Hampi Bazaar. Diante do enorme gopuran do templo, de onze andares, cinquenta metros de altura e feitura quatrocentista, o ambiente transpira uma mescla de sinais, em contínua rotação ao longo do dia: o vaivém dos peregrinos, alguns trajados de sarongs negros debruados de laranja, vacas de passo indolente e imensamente sociáveis, macacos equilibrados nas muralhas e no altíssimo portal do templo, os mantras do fim da tarde, as barraquinhas de comida de rua com as suas fumaradas e os seus pastéis picantes a dez rupias cada, a vendedora de fruta, de mirada estrábica, a escolher a papaia mais doce para ser degustada no local, o inevitável chá com leite a toda a hora, o vendedor de flautas de bambu em toques de encantar os turistas, os guias a propalarem os seus serviços, os condutores de riquexó à cata de clientes para Kamalapuram, para o Centro Real ou para o cais onde se apanha a lancha de Anegundhi, do outro lado do Tungabhadra, a minúscula velhinha que mal anoitece se deita num canto a dormir, embrulhada em panos a que o tempo há muito roubou a cor.

Cada espaço tem em Hampi um significado que transcende a sua dimensão material e a sua funcionalidade. Podemos imaginar a algazarra mundana dos vendedores e dos passantes nos idos do império, mas os simbolismos têm quase sempre conotações religiosas. Hampi é uma modernização anglófona de Hampe, palavra mais antiga que seria uma corruptela de Pampa, como é nomeado o Tungabhadra nas narrativas do Ramayana. A associação de lugares da capital de Vijayanagar a episódios e figuras dos textos sagrados hindus do Ramayana é uma insistente característica de Hampi. Bazaar refere-se à avenida de quase um quilómetro de extensão onde funcionava o principal bazar da cidade — em ambos os lados podemos ver as arcadas das lojas em pedra, algumas pintadas, sinais de uma ocupação recente pela população de Hampi. No termo da avenida, no lado oposto ao Virupaksha, fica a Matanga Hill, uma colina de cujo cimo o visitante abarca um panorama soberbo sobre uma boa parte de Hampi: a norte e a leste, o rio Tungabhadra e o templo Vittala; no sopé, o templo Achyutaraya, ao lado de campos cultivados e de bananais; a poente, o Virupaksha, acossado de manhã à noite por um formigueiro de peregrinos, ao lado de uma colina pejada de templos jainistas. Lá mais para sul, entre penedos e muralhas, percebemos o complexo de edifícios do Centro Real, as muralhas da fortaleza, os estábulos dos elefantes, o Lotus Mahal, onde a rainha costumava repousar das suas fadigas.

Em direcção a Kamalapuram e ao Centro Real a estrada é bordejada por alguns magníficos templos, como o dedicado a Krishna, com o seu grande lago quadrangular no interior, usado para as abluções dos peregrinos. A água é um elemento omnipresente em Hampi, graças aos canais de irrigação e às condutas que a levam até ao coração dos templos. Ao fim de três ou quatro quilómetros estamos no Centro Real, onde as estruturas residenciais da realeza de Vijayanagar atraem um maior número de visitantes, quer por se situaram em local de mais fácil acesso, quer porque são, no plano arquitectónico, fortemente simbólicos. São edifícios que dão conta da evolução arquitectónica nos dois séculos e meio de duração do império e testemunham uma expressiva integração de elementos islâmicos, como mostram as fachadas dos estábulos dos elefantes reais e do Lotus Mahal, um pavilhão geométrico e ecléctico que combina elementos arquitectónicos hindus e islâmicos. Estas incorporações culturais foram, afinal, não podemos deixar de pensar, a primeira vitória do inimigo islâmico, antes da batalha de Talikota, que destruiu o império e levou ao abandono da cidade há cerca de 450 anos.

Metamorfoses do dia

A partir de Hampi Bazaar abre-se ao caminheiro um mundo quase infinito de possibilidades de exploração da área, incluindo a organização de itinerários em ambas as margens do rio, já que há vários pontos de travessia e barquinhos em constante vaivém. O recurso a um guia no primeiro dia, para localização dos monumentos mais importantes, pode ser uma boa ideia, deixando para depois jornadas mais à feição do ritmo e dos impulsos de cada andarilho. Mas não é irremediável a cedência ao que pode ser uma visita mais estruturada — há mapas disponíveis, sinalização dos templos, gente a quem perguntar, e, sobretudo, vale a pena lembrar o inestimável valor da autonomia e do caminhar solitário por uma paisagem natural e cultural a cada passo surpreendente e desafiadora.

No fundo da avenida do bazar, aos pés da Matanga Hill, começa aquele que é um dos percursos mais estimulantes pelas ruínas de Vijayanagar — chamar-lhe ruínas não faz, bem entendido, justiça ao excelente estado de conservação de muitas construções. O caminho segue o curso do rio, obediente aos caprichos da penedia, desvelando ao andarilho uma série de templos, alguns ainda em uso, com os seus locatários, oficiantes e fiéis. Ao caminheiro não basta olho de lince para as belas gravuras dos templos, para as figurações eróticas mais ou menos recatadas no topo das colunas, nas alturas do gopuran de Virupaksha, nos degraus do templo Vitalla, jamais emulando as famosíssimas indiscrições de Khajuraho. Com as mudanças de luz a paisagem transforma-se e o mesmo lugar desdobra-se em infinitas faces — não é, pois, apenas a vastidão do recinto que exige muitas horas de deambulação pelo fantasma de Vijayanagar. 

Hampi é também um espaço de vida rural, com gente e bichos em movimento, e o viajante que meter os pés pelas veredas que correm pelo meio das fragas e ao longo do rio terá uma visão do quotidiano dos camponeses da região e das andanças dos seus múltiplos actores: gente de regresso das lides agrícolas com molhos de lenha à cabeça, uma colónia de macacos ocupados ao último sol da tarde com rituais de catadela social, uma manada de búfalos demorando-se sobre a erva tenra da beira-rio, rebanhos dóceis e pastores como os há em toda a parte do mundo, cabritos a meterem o focinho pelas portas dos templos, religiosos do templo Kodandarama sentados a olhar para o rio ou para sítio nenhum, lavadeiras debruçadas sobre as águas, barquinhos redondos que parecem cestos a flutuar, miúdos a mergulhar e a desafiar os crocodilos desenhados nos cartazes que interditam banhos fluviais, corvos em monótonas, aborrecidas cantarolices, vendedoras de água de coco e de sumo de cana-de-açúcar à sombra de enormes calhaus de granito ou de árvores antigas. Do outro lado do rio avista-se um punhado de pequenos templos dispersos e equilibrados nas encostas rochosas, funâmbulos e quase invisíveis, como camaleões exímios nas artes do mimetismo. Para poente, elevando-se acima dos palmeirais, no contraluz do ocaso, permanece sempre visível, como um farol, o gopuran de Virupaksha.

Na pedra a memória

Atrás da colina de Matanga há outro bazar e mais arcadas de pedra na berma da larga avenida que vai até às portas de um templo enquadrado entre fragas abruptas e bananais. Tem o nome do soberano que o mandou construir, Achyuta, entre 1513 e 1538, no tempo em que os portugueses Fernão Nunes e Domingo Paes ali viveram. Achyutaraya é um complexo com vários templos e uma mantapa (edifício em forma de alpendre, usado para várias cerimónias) dentro de um recinto murado, como acontece noutros lugares de Hampi. E também como noutros templos da capital de Vijayanagar, são incontáveis as figuras esculpidas na pedra — elefantes, cavalos, mercadores árabes, dançarinas. E uma divindade feminina, no templo de Lakshmi, com dez braços em leque e uma arma em cada uma das mãos.

O caminho segue sempre a margem do rio e Vittala fica a um quilómetro do cais de passagem para Anegundhi, lugar onde se pode contratar um auto riquexó para fazer os sete quilómetros de estrada até ao templo de Hanuman. Um dos mais elegantes templos do conjunto de Vittala é o templo Vijaya, com as suas colunas monolíticas minuciosamente trabalhadas e ornamentadas com figuras de cisnes, de dançarinas, flores de lótus, exemplos de posições de ioga e cavalos. O Vijaya não é o único caso em Hampi de evocação da arte escultórica do precedente reino hindu Hoysala, tão brilhante nos templos de Belur e Halebid, mas será talvez o exemplo mais cativante pela delicadeza da ornamentação e pela harmonia arquitectónica.

O ex-líbris de Hampi está diante do Vijaya e avista-se logo que passamos o gopuran de Vittala: uma carroça de pedra que invoca momentos significativos das narrativas do Mahabharata e um tanto semelhante às que ainda hoje vemos em certas cerimónias dos templos hindus, puxadas por grupos de peregrinos. Entre as figuras esculpidas nos frisos inferiores, como memória que a pedra guarda dos dias de ouro do império, estão soldados, caçadores, cavalos e mercadores estrangeiros que a Vijayanagar iam fazer os seus negócios: árabes, persas, portugueses.

O que dali eu vi pareceu-me tão grande como Roma

Nesta história entram, também, dois portugueses, Fernão Nunes e Domingo Paes, viajantes que deixaram relatos do esplendor da grande capital do império de Vijayanagar (a que chamaram Reino de Bisnaga). Supõe-se que João de Barros terá tido acesso a esses documentos, conservados actualmente na Biblioteca Nacional de Paris, para a composição das suas Décadas. Os dois mercadores viveram um par de anos em Vijayanagar, numa época de grande prosperidade do último império hindu, por volta da segunda década do século XVI, e os registos de que foram autores são considerados como de suma importância para o seu conhecimento. Ambos descrevem nesses relatos muitos pormenores da vida quotidiana e episódios da História de Vijayanagar, tal como, certamente, terão observado e ouvido de fontes hindus durante a sua permanência na capital. As descrições das crónicas destes dois portugueses são consideradas pelo historiador britânico Robert Sewell — que as traduziu e publicou em inglês em 1900 — como muito mais vívidas do que textos de importantes historiadores europeus. “By the side of these two chronicles, the writings of the great European historians seem cold and lifeless”, escreve Sewell na introdução de A Forgotten Empire: Vijayanagar, a Contribute to the History of India, obra reeditada em 2006.

Em ambas as crónicas encontramos descrições dos lugares que hoje podemos visitar em Hampi. Paes fala da rua do bazar como sendo “um lugar tão grande como uma praça de torneios, rodeada por filas de casas e lojas onde se vende tudo... e ao longo desta rua há muitas árvores que o rei mandou plantar para prover sombra a quem por ali passa”. O viajante português descreve os canais de irrigação, que levam a água a todo o lado e as sólidas muralhas da fortaleza do Palácio Real, que “cercam um lugar maior do que todo o Castelo de Lisboa”. E acrescenta que é preciso subir a várias colinas para se ver toda a cidade. “O que dali eu vi pareceu-me tão grande como Roma e muito bonito de se ver.”

Fernão Nunes refere-se tanto aos cerimoniais que envolviam o quotidiano do rei, como às realizações arquitectónicas e ao fausto real de Vijayanagar, já na fase decadente de Achyuta. “Os palácios do rei são grandes e têm grandes salas. E têm claustros como os mosteiros... Os reis de Bisnaga sempre gostaram de ter nos seus estábulos muitos cavalos, e sempre tiveram uns oitocentos ou novecentos cavalos e quatrocentos ou quinhentos elefantes, por conta dos quais, e das pessoas que deles cuidavam, mantinham grande despesa.”

Os dois portugueses não foram os únicos viajantes que fizeram referências encomiásticas ao império de Vijayanagar. Também o persa Abdur Razzak, um século antes, havia descrito e admirado a extensão do poder hindu, que não se deteve nem mesmo perante as barreiras montanhosas dos Gates, estendendo a sua soberania desde o Mar Arábico ao Golfo de Bengala e até aos confins do subcontinente, às portas do Ceilão.

Guia prático

Como ir

Hampi fica a 350 quilómetros de Bangalore, e a cerca de 500 de Goa, no interior do Estado do Karnataka. O aeroporto internacional mais próximo é o de Bangalore. A estação de caminho de ferro que serve Hampi é a de Hospet, a 15km. Para além da opção do acesso ferroviário, há ligações de autocarro a partir de Bangalore, Goa, Mysore e outras cidades do Karnataka. Convém fazer reservas com antecedência — para os comboios nocturnos pode ser necessário marcar com semanas de antecedência, embora o complexo sistema de reservas na Índia disponibilize diariamente lotes de emergency tickets. Em alternativa, há os comboios diurnos, sem marcação de lugar (e com o risco de se viajar de pé), com tarifas que podem rondar um euro para percursos de trezentos quilómetros. De Hospet para Hampi há ligações frequentes de autocarro, além das alternativas do autorickshaw e do táxi.

Quando ir

A melhor época para viajar para o Karnataka e para Hampi é entre Novembro e Fevereiro, quando as temperaturas são mais amenas. A região é planáltica, pelo que o clima neste período é temperado, com temperaturas entre 20 e 30 graus e o ar moderadamente seco.

Onde ficar

Em Hospet há algum alojamento topo de gama, mas o encanto de Vijayanagar desfruta-se inequivocamente melhor se se pernoitar em Hampi Bazaar. Há na povoação uma razoável oferta de guest houses. A Gopi (tel.: 8394241695 / 9480353260 / 9480044930, email: info@gopi-guesthouse.com / kirangopi2002@yahoo.com) é uma das que oferece melhores condições aos viajantes, incluindo um restaurante com gastronomia local no terraço. Outras opções aconselháveis são a Padma Guest House (tel.: 8394241330 / 83942241331, email: padmaguesthouse@gmail.com) e o conjunto de cabanas Mogwli (tel.: 9448217588, email: hampimogwli@hotmail.com). Na aldeia de Kamalapuram, o estatal Hotel Mayura oferece um pouco mais de conforto (tel:. 8394241474). Há também em Hampi oferta na modalidade de homestay, que pode ser identificada em vários sites de reserva hoteleira.

Informações

Os cidadãos portugueses necessitam de visto prévio para a Índia, que deve ser pedido através do preenchimento de um formulário disponível online (www.indembassy-lisbon.org), a remeter depois à embaixada, em Lisboa. Normalmente os vistos de turismo são válidos para um período de 180 dias após a emissão.

Hampi ocupa uma área de cerca de 26 quilómetros quadrados, pelo que deve contar-se com extensas caminhadas, ainda que uma pequena parte do essencial seja acessível por auto riquexó. Muitos templos estão situados em colinas, no topo de longas escadarias, e muitos trajectos são feitos, por vezes, através de caminhos de piso irregular. 

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