A História numa canção
A primeira impressão, para quem desembarca nos quarteirões que vão do Palácio Real ao mercado nocturno do Sisowath Quay, é a de uma Banguecoque em miniatura (com a vantagem de uma escala muito menos opressiva): os aposentos reais e ministeriais fazendo valer os faustos dourados sob o sol escaldante dos trópicos, alguns templos (e um pagode cioso, também, do seu Buda da Esmeralda, a imitar o congénere tailandês), a universidade budista, a arquitectura clássica do Museu Nacional, uma Khao San modesta, mas ainda assim com vasta prole de guesthouses, hotéis, restaurantes, botecos de comezainas rápidas e bem temperadas, bares e ruelas atravancadas de tuk-tuks. A semelhança talvez se fique pela superfície, que no caso do antigo Sião apresenta contornos mais polidos. É indústria turística, bem entendido, mas adivinham-se aqui e ali uns ainda entranhados amadorismos, uma pitada de ingenuidade e muito profissionalismo por apurar. E uma variedade e improviso que a regulação oficial e o chamado desenvolvimento ainda não manietaram – poderemos chamar-lhe, talvez, a inocência perdida de Banguecoque.
Na frente ribeirinha, onde ao fim da tarde a multidão procura, para atenuar o calor, a frescura que vem das águas, gente devota acende incenso num pagode budista ou deixa aos pés da imagem de Buda pequenos arranjos de flores de lótus, uma espécie de símbolo nacional. É outra dimensão, apenas a uma dúzia de metros da fila de bandeiras de diferentes países (uma delas é verde e vermelha e tem cinco quinas) que coteja a mistura de águas do lago Tonlé Sap e do Mekong e que é uma espécie de sublinhado oficial do crescente cosmopolitismo da capital cambojana. Do outro lado da avenida, por onde deslizam torrentes de motoretas e tuk-tuks em hora de ponta, um jardim recebe famílias em piqueniques, monges e adolescentes agarrados aos telemóveis, alguns sentados ou reclinados sobre mantas coloridas alugadas ali ao lado. Num grande cartaz ornamentado de barrocos orientais e centenas de luzinhas douradas emerge uma fotografia do rei, em enquadramento oval, como um passe-partout gigante.
A linha da frente do Sisowath Quay não junta apenas alguns dos lugares mais apreciados pelos visitantes: restaurantes, bares, restaurantes, bares – além de bares e restaurantes, claro. É, na sua semiótica calculada, ou por vezes de involuntário humor negro, um compêndio de nomes em que perpassam a História da região e ancestralidades coloniais: La Croisette, Mekong River, Le Bistrot du Coin, Mao's... Nas ruelas do interior, à beira do Museu Nacional, a animação lembra muitíssimo a bitola “banguecoquiana”, bares e karaokes com nomes autografados em néon, todos muito inventivos, ao melhor nível dos trocadilhos banais imaginados pelos criativos publicitários: Happy Girls, ponto de encontro de raparigas tristes e de clientes ainda mais do que elas.
A Angkor Beer está por toda a parte, com o seu rótulo vermelho e a imagem do icónico Angkor Wat a negro. Uma velha canção do início dos anos 1980 vem não sei de onde, é uma certa moda nestas paragens recuperar para ornamento sonoro dos bares velhos hits ocidentais . Fala das misteriosas missões nocturnas de um piloto norte-americano no Camboja: "He had the saddest eyes / The girl had ever seen / He used to cry some nights / As though he lived a dream / And as she held him close / He used to search her face / As though she knew the truth / Lost inside Cambodia". Eram os tempos da guerra do Vietname e dos bombardeamentos sobre o trilho de Ho-Chi-Minh, a linha de abastecimento das tropas vietcongue, e no xadrez político da região jogavam-se já as peças que condicionariam o devir cambojano.