Fugas - Viagens

Camboja, com os olhos no futuro

Por Humberto Lopes (texto e fotos)

Há 40 anos, a capital do Camboja caía nas mãos dos Khmers Vermelhos. Depois de um sombrio período, Phnom Penh tem vindo a reinventar-se entre a redescoberta e a revalorização de heranças culturais e o cosmopolitismo dos novos tempos.

Há um árvore nos arredores de Phnom Penh, de tronco largo, rugoso, coberto de pequenas fitas coloridas, a maioria de um vermelho vivo, como gotas de sangue brilhando ao sol. Cada uma delas significa uma homenagem deixada pelos visitantes de Choeung Ek no local onde muitas crianças perderam a vida, vítimas de um dos mais brutais regimes políticos do século XX.

Passaram, entretanto, quarenta anos depois da tomada de Phnom Penh pelos Khmers Vermelhos e o Camboja tem vindo a recuperar muito lentamente da paralisia económica e cultural e dos profundos traumas da desagregação social em que mergulhou durante quatro anos, entre 1975 e 1979. Phnom Penh, a secular capital do povo khmer, começou a libertar-se dessas pesadas sombras há pouco mais de uma década e é hoje um cenário heteróclito, paradoxal, com um punhado de dimensões contrastantes em sobreposição. Os traços que desenham o retrato da cidade não são exclusivos da capital cambojana, mas a sua combinação, mais presente nos últimos quatro ou cinco anos (período em que o crescimento do PIB foi superior a 7%, com forte contribuição do turismo), mostra uma urbe arrastada num torvelinho de mudanças que deverão pulverizar o mundo de convivência entre o que resta da velha “Pérola da Ásia” (como Phnom Penh era conhecida nos seus tempos áureos, na primeira metade do século XX) e a capital, ainda, de um país de camponeses. Mesmo que não se conte com a animação e a energia vital de uma cidade característica do Sudeste Asiático, só aquele cenário já seria bastante para justificar a viagem.

Ao leitor atento à contemporaneidade não deixarão de soar familiares as notas desta partitura. O boom imobiliário, traduzido num ritmo frenético de construção, ameaça a perenidade da arquitectura e do urbanismo coloniais. A velha arquitectura francesa dos tempos do protectorado hesita entre a decadência, e a rendição ao betão apócrifo, e a recuperação. Nas esplanadas cosmopolitas do Sisowath Quay, de nomes chiques e pretensiosos, o hedonismo exuberante de milhares de turistas convive com o sono de famílias deitadas nos passeios. O rendimento de menos de um dólar por dia de uns quantos milhões de cambojanos tem o seu reverso na ostentação obscena das elites, com os seus jipes luxuosos, tradução material de um enriquecimento rápido sustentado na corrupção (o Camboja ocupa um lugar pouco honroso no ranking mundial). Para agravar o labirinto, o providencial libertador do pesadelo do regime de Pol Pot em 1979, o Vietname, inimigo histórico do Camboja, continua a jogar as suas peças no tabuleiro (e fora dele) da intricada vida política do país.

Mas nem tudo são espinhos. A esses traços – que com ou sem carga negativa são uma parte substancial da realidade cambojana – haverá que juntar a resiliência, a estranha serenidade e a alegria de uma população no seio da qual não haverá, provavelmente, um único adulto que não tenha experimentado os horrores da engenharia social e política de Pol Pot e não tenha tido na família, pelo menos, um desaparecido durante esses tempos difíceis. São qualidades que o viajante descobrirá ao longo das suas jornadas por terras do Camboja, entre sorrisos afáveis e a hospitalidade calorosa e espontânea de quem tem como valor inestimável o acolhimento de gente estrangeira.

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