Fugas - Viagens

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Camboja, com os olhos no futuro

Uma sobrevivente com apelido português

"Lo que pasó no fue pero está siendo", escreveu um dia Octavio Paz num poema que fala do calendário circular da civilização maia. Muitos cambojanos guardam na memória imagens e histórias dos quatro anos durante os quais o governo de Pol Pot se lançou na experiência de construir uma sociedade agrária, forçando a população a abandonar as cidades e a fixar-se no campo, ao mesmo tempo que executava um dos maiores genocídios do século XX. A partir de uma percepção das labirínticas e equívocas alianças entre as diversas forças políticas cambojanas antes, durante e depois da guerra civil, não é difícil perceber algumas das razões pelas quais esse período permanece uma questão muito sensível no Camboja.

Passados quarenta anos, e apesar do silêncio sobre as feridas, há gente disponível para reavivar a memória dessa fase da História do Camboja através da narrativa das suas experiências pessoais. É o caso de Achariya (um pseudónimo), que à data da tomada de Phnom Penh pelos Khmers Vermelhos, em 1975, usava o apelido Monteiro. O nome chegou ao Camboja nos finais do século XVI, quando alguns portugueses se estabeleceram no país e se misturaram com a gente local. Desde meados do século XIX que vários membros da família Monteiro se tornaram colaboradores da monarquia cambojana, como Constantino Monteiro (emissário do rei Ang Duong, na segunda metade do século XIX), Kol de Monteiro (primeiro-ministro em 1908), Pitou de Monteiro (Ministro da Educação em 1950 e membro Conselho Real em 1960) e Khentao de Monteiro (Secretário de Estado da Educação em 1960 e embaixador em Taiwan em 1971). Em 1975, Kenthao de Monteiro, tio de Achariya, conseguiu sair do país e exilar-se em França e nos Estados Unidos.

Achariya tinha sete anos e vivia com a família em Phnom Penh, no complexo do Palácio Real, quando os Khmers Vermelhos tomaram a capital. O êxodo da população começou poucas semanas depois. Ao mesmo tempo iniciaram-se perseguições a antigos colaboradores do Estado e do governo anterior, assim como a intelectuais e artistas. O novo regime desencadeou também uma feroz repressão dirigida a tudo o que pudesse representar influência estrangeira e a todas as expressões culturais tradicionais. As escolas foram encerradas e muitas delas transformadas em prisões. O único processo educacional admissível para o regime, de inspiração maoísta, era a experiência de trabalho no campo.

A família de Achariya  foi forçada, como muitas outras, a deixar Phnom Penh e a instalar-se num "centro de reeducação". Mudou de apelido e até mesmo os nomes próprios foram substituídos para escapar a represálias. Achariya passou quatro anos num desses campos, numa zona rural, onde o trabalho forçado ocupava homens, mulheres e crianças durante mais de doze horas diárias, sendo distribuídas apenas duas refeições – um sumário caldo de arroz – por dia. Uma parte substancial da população foi dizimada nessa altura pela subnutrição e por doenças como a malária. Durante esses anos, Achariya não frequentou qualquer escola, contando apenas com as aprendizagens proporcionadas no contexto familiar.

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