Fugas - Viagens

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Camboja, com os olhos no futuro

A experiência (um tanto violenta, mas indispensável para uma percepção mais do que apenas literária de um dos episódios mais marcantes da História recente do Camboja) das visitas à prisão de Tuol Sleng e a Choeung Ek pode ser feita durante a tarde, ao longo de três a quatro horas. Por cinco dólares, um tuk-tuk faz o circuito destes dois lugares paradigmáticos do que representou para a sociedade cambojana o regime de Pol Pot.

Ao fim do dia, no Boulevard Sihanouk, o passeio central enche-se de gente caminhando ou estendida sobre a relva, entre floridos frangipanis (árvores que figuram em todos os jardins do Camboja), como se todos os dias fossem domingo. Há também o crepúsculo refrescante e os seus festivos adeptos na zona ribeirinha do Sisowath Quay, entre o Conference Hall, um edifício assinado por Van Mollyvan, e o pequeno pagode vizinho do Palácio Real, continuamente assediado pela muita veneração que as flores de lótus acompanham. Alguns olhares são sombrios e outros leves como os gestos hábeis que acendem o incenso. São imagens do quotidiano de uma sociedade que luta por se refazer dos traumas vividos num passado que a memória não apagou.

Memória dos anos de chumbo

Há no Camboja, de Norte a Sul, mais de três centenas de espaços que foram utilizados durante o regime de Pol Pot como prisões, locais de tortura e de genocídio. Dois deles tornaram-se muito mediáticos e são, hoje, paradigmáticos da forma sistemática e "rigorosa" como os Khmers Vermelhos levaram a cabo o genocídio de cerca de um quarto da população cambojana (provavelmente perto dois milhões de pessoas, segundo alguns cálculos, incluindo nesse número, também, vítimas de fome e doença), entre os anos de 1975 e 1979. Ambos estão localizados em Phnom Penh, um no interior da cidade e o outro nos arredores.

Tuol Sleng, tal como muitos outros locais congéneres, era uma escola. As salas foram transformadas em celas e em espaços usados para os interrogatórios e as torturas. É, hoje, o Museu do Genocídio e reúne, além de alguns instrumentos de tortura, uma iconografia impressionante: centenas de fotografias de prisioneiros, entre os quais se pode ver um grande número de crianças e jovens. Havia uma obsessão em documentar todas as fases do processo, o que torna a experiência da visita particularmente violenta. Algumas dessas fotografias podem ser vistas em www.tuolsleng.com. Supõe-se que possam ter passado por Tuol Sleng cerca de trinta mil pessoas, tendo sido identificados apenas doze sobreviventes.

Choeung Ek, um campo de extermínio instalado no local de um antigo cemitério chinês, é o mais conhecido dos "Killing Fields", nome atribuído aos campos de extermínio cambojanos pelo jornalista Dita Pran, um sobrevivente desses tempos. A visita é feita com o acompanhamento de um guia áudio, que fornece explicações sobre os vários pontos do percurso, correspondendo uma parte da informação a depoimentos de ex-verdugos e de alguns sobreviventes. Há um memorial, de estilo inspirado numa stupa budista, com ossos e crânios dos quase nove mil corpos sepultados em valas comuns nas imediações. Muitos dos cambojanos assassinados em Choeung Ek eram presos políticos que haviam estado detidos em Tuol Sleng. Num pequeno museu do campo, além de fotografias de dirigentes dos Khmers Vermelhos e de imagens do êxodo dos habitantes de Phnom Penh em 1975, estão muitos dos instrumentos usados para eliminação física dos prisioneiros, frequentemente utensílios agrícolas, uma vez que havia ordens para que não fossem "desperdiçadas" balas. Nos terrenos à volta, as chuvas torrenciais das monções desenterram todos os anos ossos e pequenos pedaços de roupa das vítimas, facilmente identificáveis ao longo do percurso da visita.

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