Com cuidado para não pisar vestidos, seguimos pelo chão de areia neste pueblo encantado até às portas do saloon, onde se bebem tintos de verano e cafés para enganar o sono soalheiro. Ficamos a ver passar cavalos bravos sobre o Charco de la Boca, até que se teça o silêncio do meio-dia, hora em que a aldeia pára para receber, com cerimónia, as mais de 100 irmandades (“associação leiga que tem fim devoto”, diz-nos o dicionário, para sermos precisos) frente ao santuário branco que esconde a virgem da festa.
Vieram em carros, carroças, a cavalo ou a pé de lugares como Sevilha, Barcelona ou Bruxelas, dormindo aos cinco, dez e doze em carruagens forradas de pano e pesadas de panelas, mantas, vestidos, como armazéns ambulantes de curiosidades. Muitos encontram nesta aldeia uma história de espanto que as instiga a viver com mais força. Ela começa com Gregorio Medina, caçador nas terras de Huelva, que um dia terá encontrado na cova de uma árvore a imagem de uma virgem em vestes de linho. Deslumbrado pela beleza e pela energia densa, decidiu carregar a imagem até Almonte, para mostrá-la aos seus, mas caiu exausto a meio do caminho. Quando acordou, na manhã seguinte, virgem alguma dormia consigo. A imagem havia tornado ao lugar onde a encontrou Gregorio Medina pela primeira vez. E do episódio fantástico entre os caminhos de Huelva nasceu a devoção e crença no milagre, erguendo-se entre 1280 e 1285 o santuário de El Rocío, em honra da “Blanca Paloma”.
Todos os dias são de romaria
Aos 70 anos, Diego Ramírez, membro da Hermandad de la Ronda e administrador da página Rocio.com, já não se mete em loucuras sem motor de fazer 200 quilómetros numa carroça puxada a cavalos e alimentada a tortilha. Mas continua a vir a El Rocío sem falhas para dar corpo à devoção que iniciou com a família há 30 anos. Canta porque as letras fazem parte do texto do ano inteiro. “Acompanho diariamente os acontecimentos rocieros”, afirma Diego, como se todos os dias do ano fossem de romaria.
Mas o que impele o señor Ramírez a procurar o enclave rociero a cada Primavera? “Quando vi tudo isto, impactou-me a religiosidade e a devoção; deixei-me contagiar”, explica à Fugas, recordando o caminho para trás, “cheio de marcos que emocionam”, como a passagem pela ponte de Ajolí ou nas construções romanas de Coria, onde se cruzou com as irmandades que, como ela, ali pararam para descansar, cantar e contar as histórias do caminho. Por outro lado, Diego entende que a festa se tem tornado cada vez mais especial, muito pela dimensão crescente e pela reunião de “pessoas de muitas partes de Espanha e do mundo num lugar que tem algo de mágico”.
Mesmo em dias sem festa rija, El Rocío sofre de uma espécie de magnetismo oculto. Os alpendres de madeira a guardar as cabeças do sol, os cavalos à porta e a vida suspensa nas cordas que não se desenlaçam dos corrimões são o começo de clichés gerais, quando os clichés dizem muito. Também o desemprego bateu ali, como em toda a Espanha, conta-nos Manuel Romero Triviño, de 55 anos, habitante da aldeia há 16, para justificar a calmaria e o sono da aldeia na ausência de festa. Fora isso, os empregos são de passo lento, como pede o corpo em terras meridionais, e ligam-se sobretudo à natureza e ao turismo.