Assim, conduzir na A-483 sem romaria à vista, depois de uns bons quilómetros de bosque, e avistar a placa que aponta para El Rocío pode ser o início de um bom imprevisto. Seguindo-se o instinto, dá-se conta da vida western num cenário a sul: as esplanadas são matutinas para quem reza por um café sentado na areia, os olhos pousarão sobre quem sai e entra, e os bons dias virão dos criadores de gado, guardas florestais (do Parque Nacional de Doñana), cultores de morangos e comerciantes de recuerdos. Depois do café com leite e da tostada com azeite, todos seguirão firmes para a igreja, um a um. Como Triviño ilustra, aqui, “tudo gira em torno da ermida, onde vive a melhor vizinha do mundo”, a quem os habitantes prestam “uma visita obrigatória” ao início e final de cada dia. Pedem que os ajude nas colheitas, que lhes dê saúde, que esteja presente. É que “há um momento na vida em que o homem precisa de se agarrar a algo, acreditar que existe um ser superior”, caso contrário o mundo deixa de fazer sentido. Por isso, enganam-se os que chegam à aldeia em dia de romaria e que se ficam pelo primeiro plano. “El Rocío não é a festa, não é o que se vê, sobretudo na televisão. É antes o que ela [a Virgem], do seu altar, consegue ver, que no fundo é Deus convertido em pastor. Só quem entender o que digo é que conseguirá compreender o que é verdadeiramente El Rocío”.
Ofertas da casa
Ainda que o evento seja pura e duramente católico – com direito a homens que se atiram enérgicos ao andor determinados a carregar a Virgem, mulheres vertidas em lágrimas e crianças benzidas em ânsia junto ao santuário –, laicos sentam-se à mesa com cristãos sem que as conversas se inflamem. Na Hermandad de Jaén, (outro) Diego tira cervejas à pressão para copos de plástico na madrugada de sábado para domingo. Entramos a perguntar pelo preço de uma. “Mira, hombre, no es nada… Está en la casa [É por conta da casa]!” O restante discurso enrola-se na algazarra das mesas e nos preparativos do almoço do dia seguinte.
Ainda não nos conhecemos e Diego já nos pousa a mão nas costas para convidar a comer e a beber. Pão, presunto, azeitonas e umas sobras do aqui e do além. Chama a esposa para ajudar, que se há lugar para receber bem o viajante – categoria mais alta do que a de católico por estas paragens, ao que parece –, esse lugar é El Rocío.
O dia seguinte será de comer bem, por isso, às três da manhã os ponteiros não marcam descanso para todos. Diego tem um restaurante de comida regional em Jaén, pelo que a irmandade que anima em El Rocío não pode ficar atrás quanto aos prazeres do prato. “Precisamos de comer bem para aguentar toda esta actividade, não?!”, exclama o rociero, de barriga farta a desafiar os botões da camisa. E no rigor dos temperos e tempos percebemos que Rocío também é isto: um festival gastronómico de Espanha numa aldeia vestida de branco.
Prestes a abandonar a mesa para descansar no vagão que a trouxe até aqui, Rosana mancha de vinho o vestido verde. Dá-nos tempo de imaginar: pelo tecido e rendas, terá custado uns 300 euros. É que, pouco antes, ao balcão da irmandade de Jaén, nos haviam confessado que os trajes das rocieras andam entre os 100 e os 500 euros. “E há muitas que têm mais de dez vestidos!”, acrescentava Esmeralda, com a mão em frente à boca madrugadora, já sem bâton. Mas nem por isso Rosana chora. “Um pano com álcool resolve”, improvisa, num recurso de ápice aos ensinamentos de família.